quinta-feira, 9 de março de 2017

Contrarreforma

1. A alteração agora votada à Lei-quadro das Entidades Reguladoras Independentes (de 2013) que confere à Assembleia da República o poder de recomendar ao Governo que destitua reguladores em funções é surpreendente e assaz bizarra.
Por duas razões:
  - porque permite ao parlamento colocar pressão sobre o Governo para fazer algo que este em princípio não pode fazer (como se diz a seguir);
  - sobretudo porque vai contra a própria razão de ser da regulação independente, pois essas autoridades são criadas justamente para "despolitizar" a regulação de certos setores, tendo como caraterísticas essenciais um mandato longo e a irremovibilidade dos reguladores (salvo falta grave apurada em processo independente), bem como a independência em relação ao Governo de cada momento.
Ao permitir doravante que a maioria parlamentar avalie o desempenho individual dos reguladores e recomende ao Governo a sua destituição - substituindo a sanção disciplinar por uma sanção política -, é evidente que qualquer processo desses retira aos reguladores visados as condições para desempenhar as suas funções de forma independente, levando em geral à sua demissão.

2. Trata-se de uma enorme mudança na orientação política de todos os governos em relação à regulação independente, desde há um quarto de século (desde a criação da CMVM em 1991 até à Lei-Quadro de 2013).
Estamos perante uma verdadeira contrarreforma que põe em causa os alicerces do "Estado regulador", segundo o qual incumbe ao Estado defender a concorrência e suprir as falhas e insuficiências do mercado de acordo com regras estáveis imunes ao ciclo eleitoral e de forma imparcial, separando a função reguladora dos interesses do Estado-empresário. Tal é a lógica da regulação independente numa economia de mercado regulada.
De resto, as autoridades reguladoras (noção que na Lei-Quadro inclui a Autoridade da Concorrência) aplicam sobretudo direito da UE e não direito nacional e integram as redes de reguladores da União, pelo que ainda menos se justifica a ingerência política do parlamento nacional.

3. É patente que, ao dar ao parlamento o poder de "julgar" e condenar individualmente os reguladores, esta inovação legislativa insere-se no atual clima de hostilidade política em relação às entidades públicas independentes, que por definição fogem ao comando da maioria parlamentar-governamental.
Mas a paixão política não é boa conselheira quando se trata de legislar e o acquis do Estado regulador devia estar imune às emoções políticas conjunturais.