quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Voos da tortura - Portugal autorizou

A propósito do telegrama da Embaixada americana hoje divulgado pelo site WIKILEAKS, reproduzo passagens do Requerimento que apresentei à PGR em 8/7/2009, reclamando do Despacho de Arquivamento (DA) da investigação sobre os voos da tortura autorizados a passar por Portugal.
Os textos do DA e do meu requerimento podem ser integralmente lidos aqui.
Ofereço o merecimento dos autos.


"2.b.2.
Importa, portanto, estabelecer, perante a informação - publicamente disponível, pelo menos desde 2003 - sobre a natureza da prisão de Guantanamo, e para investigação dos crimes dos autos, em que informação e em que considerações políticas e/ou jurídicas se basearam as autoridades portuguesas para conceder autorizações diplomáticas para aterrarem em Portugal aos voos militares e de Estado, provenientes ou destinados a Guantanamo.
Esta exigência resulta particularmente reforçada pelo conteúdo do Anexo II da carta de resposta do MNE (datada de 10 de Março de 2009) aos pedidos de informação do DCIAP. Este Anexo II, intitulado “Utilização do Espaço Aéreo Nacional e sob Jurisdição Nacional por Aeronaves Estrangeiras, Civis e de Estado” explica, no capítulo II (“Aeronaves Militares e de Estado Estrangeiras”):
“A) AUTORIZAÇÕES PERMANENTES ANUAIS: Trata-se de uma Blanket Diplomatic Clearance cobrindo diversas categorias de missões pré-definidas...
As autorizações permanentes anuais concedidas por Portugal aos outros Estados caracterizam-se, em princípio, por não permitirem o transporte de material contencioso.”
[ênfase dos autores]
B) AUTORIZAÇÕES ESPECIAIS: Também na modalidade Blanket Diplomatic Clearance, estão actualmente em curso duas autorizações genéricas de sobrevoo do espaço aéreo nacional e utilização da Base das Lajes por aeronaves americanas...: São as Operações “Enduring Freedom” e “Iraqi Freedom”. (ênfase dos autores]
Estas duas autorizações são concedidas a título absolutamente excepcional aos EUA. Portugal não concede autorizações deste tipo a nenhum outro Estado. Elas permitem o transporte de material contencioso e de pessoas...”[ênfase dos autores]
Em primeiro lugar, e perante esta informação, o MP não pode deixar de indagar junto do MNE sobre a natureza concreta do “material contencioso” que estas autorizações permitem transportar.
Longe de pôr em causa a particular estreiteza dos laços bilaterais entre Portugal e os EUA, é imperativo esclarecer se esses laços, neste caso particular, implicavam autorização das autoridades portuguesas para serem levadas a cabo, em território nacional, actividades incompatíveis com o Direito Internacional, com a ordem constitucional da República Portuguesa e com o Tratado da União Europeia.
Segundo, tendo em conta a banalidade do transporte de pessoas em voos militares – especialmente no que diz respeito ao transporte de militares americanos entre os teatros de guerra do Iraque e do Afeganistão – importa esclarecer se a referência a uma permissão especial, por parte do Estado português, para o “transporte de material contencioso E PESSOAS” contempla – explícita ou implicitamente – a transferência de prisioneiros de, ou para, estabelecimentos prisionais fora da legalidade internacional. E, assim, se o Estado português participou durante vários anos, activa e conscientemente, em violações sistemáticas do Direito Internacional e do Tratado da União Europeia.
(...)
11.12.
Não deixa também de ser surpreendente esta conclusão do MP perante a extraordinária admissão do MNE de que o voo militar PAT653 [TUZLA-LAJES-GUANTÁNAMO] “não consta [dos] arquivos”, bem como a negligência do mesmo Ministério em exigir às autoridades americanas informações mínimas sobre a natureza, conteúdo, passageiros e função dos voos que têm Guantánamo como origem ou destino, e que recebem uma autorização genérica de aterragem nas Lajes no contexto da Operação Enduring Freedom [ver o Ponto 2 b) sobre os voos militares].
(...)
2.b.3.2.
Já no caso do voo RCH900Y, o DA, por omissão ou esquecimento, não menciona que este voo é feito no contexto da Operação Enduring Freedom e que, de acordo com o pedido de autorização americano, “this mission will move security forces and medical personnel... approx 95 PAX”.
Ora, esta última informação é determinante, porque revela a prática de troca de informação entre as autoridades militares americanas e o MNE português. Isto é, os EUA por vezes justificavam a razão operacional para – e o conteúdo dos – voos em causa, mesmo quando estes se inscreviam na “blanket diplomatic clearance” da Operação Enduring Freedom. E também é significativa – num voo militar proveniente de Guantanamo que aterrou nas Lajes, as autoridades portuguesas escolheram não se interessar pela identidade dos 95 passageiros(...)
2.b.6.
Neste quadro, é particularmente surpreendente a ausência de informação alegada pelos MNE e MDN sobre a natureza, missão e passageiros, da esmagadora maioria dos voos militares que têm Guantánamo como destino ou origem , nomeadamente sobre o seu contexto operacional específico.
O que revela ou uma selecção cuidadosa da informação a disponibilizar às autoridades portuguesas por parte das autoridades americanas e/ou um manifesto desinteresse por parte do MNE e MDN em garantir que o território nacional não fosse utilizado para actividades incompatíveis com o Direito Internacional, o Tratado da União e a Constituição da República Portuguesa.
Este facto é tão mais significativo quanto, como já se viu em 2.b.2. supra, em termos genéricos, as autorizações a todas estas aeronaves incluem permissão para o "transporte de material contencioso e pessoas”- o que aponta, no mínimo, para dolo eventual de quem autoriza.
(...)
2.b.7.
É particularmente significativo e suspeito, face ao objectivo desta investigação, que tal como decorre dos dados fornecidos pelo DA relativamente às 6 escalas de 5 aeronaves civis mencionadas, que tiveram autorização das autoridades portuguesas para aterrar na Base das Lajes (pag. 105 a 112 do DA), que os respectivos Formulários de Tráfego sejam totalmente omissos em relação à especificação do número dos tripulantes e passageiros.
Estamos numa Base Militar, operada conjuntamente pelas autoridades portuguesas e americanas: esperar-se-ia que o controlo de quem chega e parte fosse ainda mais rigoroso do que num aeroporto civil. Não é o caso, relativamente a estes voos civis privados!
(...)
2.b.8.
Quanto aos voos militares estrangeiros autorizados a aterrar na Base das Lajes, não há dúvidas: as autoridades portuguesas não cuidam minimamente de se assegurar de que tais voos não são utilizados para transportar presos em violação das obrigações internacionais do Estado português em matéria de direitos humanos fundamentais! Mesmo depois de terem sido lançados, em finais de 2005, diversos inquéritos internacionais – incluindo do Parlamento Europeu e do Conselho da Europa – relativamente às “extraordinary renditions” e à cumplicidade nelas de autoridades europeias.
É isso que resulta, claramente, das declarações feitas pelo actual Comandante português da Base das Lajes/Base Aérea nº 4 (desde Setembro de 2008), Tenente-Coronel Manuel Maria Mories Dionísio, declarações constantes do processo a fls. 2733:
“Quanto às aeronaves enunciadas, não existe qualquer de número e nomes de militares transportados, bem como de carga, pois aqueles não são, em princípio, fornecidos à FAP. Só quando se trata de carga perigosa é que é obrigatório dar conhecimento prévio à FAP do seu transporte”.
(...)
2.b.9
É particularmente significativo das falhas da investigação que a PGR se tenha abstido de aprofundar, junto das autoridades portuguesas e americanas, as questões relativas ao conteúdo de voos militares americanos referenciados como podendo estar envolvidos nas “extraordinary renditions” e que Portugal autorizou a aterrar na Base das Lajes. Tal significado resulta não apenas da admissão supra referida do desinteresse das autoridades militares portuguesas pelas pessoas transportadas em quaisquer aviões militares americanos.
(...)
6. Regista-se a conclusão do DA, segundo a qual “No entanto, há que referi-lo, esta investigação permitiu confirmar a passagem pelo território nacional das aeronaves mencionadas pelas assistente [Ana Gomes] e na identificação de 148 tripulantes, ou passageiros". Significa esta passagem que os dados em relação aos voos avançados pela Assistente Ana Gomes se confirmam, incluindo uma lista da NAV de 94 voos, na maioria militares, de e para Guantánamo, escalando aeroportos portugueses, autorizados por Portugal entre 12 de Janeiro de 2002 e 24 de Junho de 2006, lista que o governo português não disponibilizou ao Parlamento Europeu e à Assembleia da República, apesar das insistências da Assistente e do CTPE".