segunda-feira, 13 de fevereiro de 2006

Resposta ao Augusto

Querido Augusto,
Só agora li a carta que me enviaste ontem através do «Público».
Como explico num artigo que encontrarás na «Aba da Causa» e que escrevi para o «Courrier Internacional» no dia 6 (antes de saber se o MNE falara e o que haveria de comentar Nuno Pacheco em editorial), a passagem pela Indonésia ensinou-me algumas coisas.
Antes de mais, a não tomar por islâmico tudo o que se apresenta como tal e, sobretudo, a não provocar incidentes por desdém religioso. Fez-me ainda entender como se pode desencadear uma espiral de violência insultando sentimentos religiosos dos muçulmanos (ofender-lhes o Profeta é gratuitamente desrespeitoso - e muito diferente de contestar violações de direitos humanos decorrentes de certas interpretações da Sharia). Sobretudo no contexto actual em que milhões de muçulmanos vivem na pobreza e oprimidos, tendo boas razões para se queixar dos dois pesos e duas medidas das democracias ocidentais que, em boa parte, sustentam no poder os seus opressores.
Como é evidente, tens todo o direito de discordar de mim e de me censurar. Espanta-me é que possas pensar que eu pudesse ter escrito o que escrevi, ao criticar um editorial de Nuno Pacheco, por subscrever «os principios da cataquese» do Prof. Freitas do Amaral.
Eu - e tu deverias sabê-lo, já era assim nos nossos tempos de liceu, que evocas - ando na política por convicções: não me sujeito a «outras ordens de políticas» e, muito menos (vacinada que fiquei pelo maoismo) a ordens de outros políticos.
E por isso só apoiei Freitas do Amaral na exacta medida do que deixei registado. Não subscrevi, nem subscrevo, tudo o que ele possa ter invocado em comunicado do MNE - o qual, de resto, eu não conhecia quando escrevi o que escrevi sobre o editorial do «Público». O que me chegou - e a distância, em Bruxelas não facilita ver tudo o que se publica, na íntegra e na hora - foram relatos das agências indicando que o MNE se/nos distanciara dos propósitos ofensivos do jornal dinamarquês que publicou os «cartoons». Era isso, apenas, que eu afirmei (e mantenho) que o Prof. Freitas do Amaral andou bem em fazer, quando outros responsáveis europeus só cuidavam de condenar a violência - obviamente condenável - contra embaixadas da Dinamarca. E era contra esse aspecto principal da actuação de Freitas do Amaral que Nuno Pacheco se insurgia, inclusivamente perguntando «se os povos muçulmanos nos tinham pedido alguma coisa», como se fosse preciso um tal pedido para o Governo fazer o que devia fazer - que era demarcar Portugal dos propósitos insultuosos dos «cartoons» (sem prejuízo de eles continuarem a ser publicados por quem quer que fosse).
Não era - não é, no meu entender - a liberdade de expressão na Europa que estava em causa (liberdade pela qual muita gente nos países muçulmanos luta, com o meu apoio activo). O que estava em causa era o incitamento à perseguição religiosa e racista visada pelos «cartoons» num contexto de crescente estigmatização contra os muçulmanos, instigada pela extrema-direita na Europa e no mundo. E nesta leitura estou, de facto, acompanhada pela palestiniana Leila Shahid, que citas. Segundo ela (Deutsche Welle,de 8/2), os desenhos foram «the straw that broke the camel's back para os muçulmanos, empurrados «ao limite» pelos desenhos, o que deveria ser entendido «no contexto islamofóbo» e «na linguagem islamófoba» prevalecentes hoje a nível mundial.
Na tua carta lembras as récitas de ópera que vimos na geral do Coliseu, já lá vão uns 35 anos. Claro que antes do 25 de Abril nunca lá ouvimos a «Flauta», onde o genial Mozart canta as virtudes da tolerância. Mas era Mozart o que tocava no carro, ontem de manhã, quando parei em frente da Sinagoga Portuguesa de Amesterdão. Estava fechada. Chovia. Mas parei na mesma. Para evocar, nestes tempos conturbados de incitamento preconceituoso, o sofrimento dos judeus portugueses - os que conseguiram sobreviver e exilar-se para fugir à Santa Inquisição. Tão «santa», quanto Bin Laden será «islâmico» e os «cartoons» dinamarqueses «inocentes» e «libertadores».
Retomemos, então, Mozart...
Com a amizade de sempre
da
Ana