segunda-feira, 24 de maio de 2004

Memórias acidentais

1. A minha Madrid
Julgo pertencer a uma minoria de portugueses que gostam de Madrid. Foi uma afeição tardia. Embora já tivesse lá estado anteriormente, foi numa estada de várias semanas no início dos anos 90, numa missão de investigação universitária, que aprendi a gostar da capital espanhola.
Hospedado numa zona privilegiada, junto à Ópera, nessa altura ainda em obras de restauro, tinha a dois passos a Porta do Sol e a Praça Maior, por um lado, e a Gran Via, por outro. Muitas vezes ia a pé para o meu local de trabalho, o Instituto Nacional de Administração Pública, à Atocha, em frente ao Jardim Botânico, perto desse deslumbrante triângulo de grandes museus, o Prado, o Thyssen-Bornemisza, o Rainha Sofia. À noite partilhava da vida "callejera" dos madrilenos perdendo-me nos melhores sítios de tapas à volta da Praça Maior. Nos dias livres palmilhava Madrid inteira e arredores.
Nunca mais deixei de prezar a recordação desse ameno Outono madrileno.

2. «O meu rei»
Sabia que um amigo meu se encontrava na Universidade Complutense, supostamente a preparar um doutoramento. Já não nos víamos há alguns anos. Quando o encontrei na Cidade Universitária, fiquei estupefacto quer com o seu nacionalismo militantemente anti-espanhol, quer com o seu desconhecimento de Madrid e dos arredores, apesar do tempo que já levava lá. Dias depois consegui arrastá-lo numa visita ao Escorial. Atrás do mosteiro encontra-se uma estátua de Filipe II. Ocorreu-me uma ideia maligna. Pedi-lhe para me tirar uma fotografia junto à estátua e depois de recuperar a câmara fotográfica comentei provocadoramente: «precisava de uma recordação pessoal com um dos melhores reis de Portugal». Temi que lhe desse uma apoplexia!...

3. A chuva de Aranjuez
Era uma excelente ocasião para visitar a deliciosa Aranjuez, aproveitando para assistir ao concerto comemorativo do nonagésimo aniversário de Joaquín Rodrigo, o compositor do Concerto de Aranjuez, nessa altura ainda vivo. Porém, saídos de Madrid no carro do excelente Eloy García, a meio caminho o céu tornou-se escuro e na aproximação ao destino a tempestade tinha-se desfeito em chuva pesada. No imenso pátio do palácio real, onde o espectáculo deveria ocorrer ao ar livre, centenas de cadeiras alinhavam-se desamparadamente sob a chuva, agora leve e fina. Não houve concerto. Mas sempre que oiço o plangente oboé no adágio do Concerto, ocorre-me, nítida e forte, a imagem do parque de Aranjuez naquele fim de tarde chuvoso e triste.

Vital Moreira