quinta-feira, 27 de maio de 2004

Ilegal, inconveniente e insustentável

1. Uma nomeação ilegal
Ao contrário do que sustentou o Ministério das Finanças, seguido por alguns comentadores, a nomeação do novo Director-Geral dos Impostos, "requisitado" ao BCP, é francamente ilegal. Na verdade, a única base legal disponível seria um diploma de 1974, de um dos governos provisórios, que permitiu ao Governo requisitar excepcionalmente às empresas privadas gestores e técnicos para a Administração pública. Todavia, essa figura excepcional pressupõe:
a) a verificação dos requisitos da requisição administrativa de bens ou pessoas privadas, ou seja, a existência de uma necessidade urgente e transitória da Administração que não possa ser satisfeita pelos seus próprios meios;
b) em princípio, não pode exceder 180 dias, salvo acordo da empresa e da pessoa em causa (e claro, mediante fundamentação do prolongamento);
c) o vencimento corresponde à remuneração do cargo em causa, podendo porém a empresa requisitada pagar a diferença de vencimentos ao seu trabalhador, se o desejar.
Independentemente da duvidosa conformidade constitucional deste regime excepcional, ele não pode ser utilizado fora das suas condições e termos, justamente por ser excepcional. Ou seja, não pode ser utilizado como modo de preencher normalmente uma necessidade permanente da Administração, como é o cargo de director-geral. No caso concreto, o Ministério das Finanças não justificou a necessidade e a urgência de uma requisição ao sector privado nem a necessidade de o fazer por 3 anos.
Quanto ao vencimento, seria ilegal abonar ao requisitado mais do que o vencimento de DG, tal como seria ilegal se a Administração viesse a compensar o BCP pela diferença que este resolvesse abonar ao seu empregado requisitado. A este propósito cabe referir a flagrante ilegalidade de um caso precedente, no Ministério da Defesa, em que um elemento requisitado à PT continua a ser remunerado por inteiro por esta, sendo ela depois reembolsada pelo Ministério por toda a importância paga (aliás de montante desconhecido!). Trata-se de um cambalacho sem o mínimo fundamento legal. O recurso à requisição não pode importar um acréscimo de despesa do Estado com o cargo em causa. A lei é clara quanto ao limite da remuneração a pagar pela Administração, e tratando-se de uma lei especial, só poderia ser derrogada por outro lei especial, que não existe.

2. Uma opção inconveniente
O recurso a pessoal do sector privado, mesmo se excepcional como se viu, cria sempre uma perturbação das regras da função pública. Primeiro, porque significa que o Governo entendeu não existir ninguém capaz nos quadros da Administração pública ou entre profissionais independentes; depois, porque cria situações de "dois senhores" e de possível conflito de interesses, visto que o requisitado continua vinculado à sua empresa, de quem pode estar a receber um parte considerável do seu vencimento.
É evidente que, no caso concreto, o requisitado não aceitou o cargo sem garantia de receber a sua actual remuneração por inteiro, pois a remuneração de DG é menos de um terço do seu vencimento no BCP. Como a Administração não lhe pode pagar mais do que aquela - pois como se viu, não existe qualquer base legal para pagar mais do que isso -, a sua aceitação significa que o BCP se prontificou a cobrir o resto, que é muito mais. Ora, a que propósito é que o BCP, além de perder temporariamente um seu quadro qualificado, ainda lhe vai pagar uma considerável quantia em dinheiro, apesar da sua ausência? De duas uma: ou porque conta ser reembolsado pela Administração, o que (repete-se) carece de qualquer fundamento legal, ou porque conta ser compensado por outro modo. É evidente que não o faz por espírito de solidariedade cristã, por mais pio que seja esse grupo bancário! Mesmo que não houvesse nada em troca, é evidente que a própria Administração fiscal tenderia a ser mais leniente com essa empresa, tendo em conta o favor que ela lhe está a prestar.
Portanto, à flagrante ilegalidade soma-se a óbvia inconveniência.

3. Uma decisão insustentável
Vivemos, ou julgamos que vivemos, num Estado de Direito. Os actos administrativos devem ser fundamentados, de facto e de direito. No caso concreto falta a base legal e material tanto para a referida requisição administrativa como para a anunciada despesa pública com a remuneração privada do requisitado. Fazer o que o Governo pretende, só com outra lei. Há aqui uma ilicitude administrativa e, no caso de o erário público sustentar integralmente a remuneração, também uma infracção financeira.
Como é evidente, porém, não existe nenhum interessado em impugnar a ilegalidade do acto. Cabe portanto ao Ministério Público fazê-lo, ao abrigo do seu poder-dever de velar pela legalidade da actividade administrativa - especialmente porque está em causa somente um interesse público -, bem como ao Tribunal de Contas apurar a necessária responsabilidade financeira. Tratando-se do Ministério das Finanças, isso impõe-se por maioria de razão. Ai de nós se uma endrómina destas vingasse!

Actualização I (28 de Maio)
Afinal, segundo informa o Público há pelo menos mais un caso de requisição de pessoal pelo Ministério das Finanças ao sector bancário privado, o que confirma um claro abuso na utilização da figura excepcional da requisição administrativa. Por outro lado, não existe informação oficial sobre a remuneração recebida pelo requisitado, a qual porém é paga pela empresa de origem, sendo esta depois reembolsada pela Administração pelo montante total, em violação flagrante da lei que rege a requisição de pessoal. Os contornos de todo este "imbroglio" são cada vez menos claros...

Actualização II (28 de Maio)
Segundo o Jornal de Negócios - que tem dedicado a este assunto a devida atenção -, o Ministério das Finanças invoca agora o Decreto-Lei nº 41/84, de 3 de Fevereiro, que prevê, no caso destas requisições, a fixação da remuneração pelo Ministro requisitante, bem como o direito de opção do requisitado pela sua remuneração de origem. Trata-se de um elemento novo, que altera parcialmente a compreensão do caso. Mas, mesmo admitindo que este diploma revoga o diploma de 1974 quanto à questão remuneratória (e só nisso), subsistem, mesmo quanto a esse aspecto, pelo menos as seguintes ilegalidades: (i) a menção desse diploma não consta, como era exigido, da fundamentação legal do despacho de nomeação; (ii) o referido despacho não menciona a remuneração, como claramente impõe esse diploma; (iii) em qualquer caso, o montante da mesma não pode superar os limites estabelecidos na lei geral quanto às remunerações no sector público administrativo, não podendo exceder 75% da remuneração do Presidente da República, nos termos da Lei 102/88, de 25 de Agosto, o que fica bem aquém do luxuriante vencimento de origem do novo director-geral, cerca de 23 500 euros mensais!