quinta-feira, 19 de fevereiro de 2004

A Ordem dos Médicos ataca de novo

1. A pulsão corporativa
A Ordem dos Médicos (OM) pronunciou-se contra a criação do ensino da Medicina nas regiões autónomas dos Açores e da Madeira, recentemente anunciado pelo Governo. Na verdade, trata-se de iniciativas partilhadas com as universidade de Coimbra e de Lisboa, respectivamente, sendo estas as responsáveis pelos cursos, pelo menos por agora.
Para sublinhar a sua oposição, a OM lança um «claro aviso aos potenciais candidatos no sentido de ponderarem a avaliação que, no futuro, competirá aos órgãos próprios da Ordem em termos de trajecto profissional». Se isto não é uma ameaça, não se sabe o que isso seja...
Se há alguma coisa da qual a OM não pode ser acusada é de mudar de opinião nesta matéria. Desde sempre ela foi campeã da luta contra a ampliação do ensino médico e o alargamento do número de vagas nesse ensino. Pretextando a suficiência de médicos e a defesa da qualidade do ensino, ela defendeu sistematicamente as barreiras de acesso a um mercado que quis manter o mais reduzido possível, sabendo que a escassez só podia “valorizar” os efectivos existentes. Como ninguém lhe pediu responsabilidades pela preocupante situação de falta de médicos a que chegámos, ela sente-se capaz de insistir na mesma orientação.
Mas, francamente, quando as consequências das suas posições estão à vista, a insistência da OM e a sua ameaça pouco discreta tornam-se verdadeiramente inadmissíveis.

2. Zelo diferenciado
A OM admite instaurar um processo disciplinar ao médico envolvido no caso do processo penal de aborto de Aveiro, que terminou em absolvição dos arguidos.
Se os factos em causa são disciplinarmente relevantes, a Ordem tem toda a razão em apurar a correspondente responsabilidade, mesmo correndo o riso de ser "mais papista do que o papa" na questão da punição do aborto. Contudo, não pode deixar de estranhar-se este zelo da OM, que é conhecida pela sua enorme complacência neste domínio. Por exemplo, foi instaurado algum processo disciplinar às centenas de médicos acusados de corrupção pelos laboratórios farmacêuticos (e alguns já criminalmente condenados)? E que é feito dos processos disciplinares aos médicos responsáveis pela indecoroso caso das centenas de atestados de doença passados a alunos de Guimarães para não comparência em provas escolares?

Vital Moreira