sexta-feira, 30 de janeiro de 2004

"A mãe de todos os enganos"

"O que estava em causa no relatório Hutton eram as circunstâncias que envolveram a morte do Dr. Kelly e designadamente: se o governo britânico sabia que a "declaração dos 45 minutos" estava errada ou se tinha havido ordens para "sex up" o relatório.
Hutton deixou de fora, por extravasar do seu mandato, a questão de saber:
- se a intelligence recolhida em relação às armas de destruição maciça constante do dossier publicado pelo Governo em 24 de Setembro de 2002 era suficientemente forte e fiável para justificar a decisão do Governo de participar na guerra contra o Iraque; e
- se, a intelligence contida no dossier, não obstante aprovada pelo Joint Intelligence Committee e reputada pelo Governo de fiável, deveria ser considerada fiável ou não.
E estas seriam as verdadeiras questões de substância que não chegaram a ser apuradas.
Tal como o mandato foi interpretado pelo Juiz Hutton, bastou que a declaração dos 45 minutos constasse do relatório do SIS e que o SIS a considerasse de confiança. Tal foi suficiente para ilibar o Governo de qualquer responsabilidade de incluir a declaração no seu relatório de 2002. Hutton fez uma mera apreciação formal da questão, nos seguintes termos: «The 45 minutes claim was based on a report which was received by the SIS from a source which that Service regarded as reliable. Therefore, whether or not at some time in the future the report on which the 45 minutes claim was based is shown to be unreliable, the allegation reported by Mr Gilligan on 29 May 2003 that the Government probably knew that the 45 minutes claim was wrong before the Government decided to put it in the dossier, was an allegation which was unfounded». (paragrafo 467 ii)).
Não estava em causa no relatório Hutton apreciar a substância da declaração. Se em si era verdadeira, ou se o Governo deveria ter feito diligências no sentido de se assegurar da veracidade da declaração.
Portanto a dúvida é ainda legítima. Será que Blair estava intimamente convencido que era verdade que o Iraque poderia utilizar armas de destruição maciça em 45 minutos? A sua convicção era idêntica na data de publicação do relatório, em Setembro de 2002 e antes do início da Guerra, mais de seis meses depois? Ou será que não lhe interessava aprofundar se era verdadeira ou não, desde que fosse o SIS a afirmá-lo e lhe conviesse a declaração? Não será minimamente exigível que não se tomem decisões da gravidade da de participação numa guerra sem efectuar todas as diligências para se assegurar que os dados de intelligence, que são a base fundamental dessa decisão, são fiáveis? Sobretudo neste caso, em que a decisão de invadir o Iraque suscitava forte oposição da opinião pública internacional e não tinha o apoio do CS e da maioria da comunidade internacional, que, de acordo com a sua própria intelligence, não encaravam a "ameaça iraquiana" de forma tão iminente.
Recorde-se que em 1998 os dossiers de desarmamento do Iraque estiveram muito perto do encerramento. Em Dezembro desse mesmo ano, invocando a existência de locais de produção de armas de destruição maciça, os EUA e o Reino Unido bombardearam durante meses inúmeros pontos estratégicos no Iraque. Prosseguiu-se uma política de contenção, baseada em sanções à importação de produtos e substâncias susceptíveis de serem usadas no fabrico daquelas armas. Em 2003, todos os elementos de intelligence fornecidos a Hans Blix foram verificados no local, por inspectores que circulavam livremente no Iraque, demonstrando-se infundados, e por vezes mesmo inverosímeis, como foi o caso da alegada importação de material para fabrico de armas nucleares (mais tarde esclarecido que se tratava de uma informação incorrecta da intelligence americana, baseada na intelligence britânica). EUA e Reino Unido foram para a guerra com base na sua própria intelligence que considerava o Iraque uma ameaça iminente. Foram os únicos a acreditar nessa informação, quando muitos outros não acreditavam na emergência de um ataque. Preferiam antes o desarmamento através das inspecções, que era aliás um processo já em curso sob a liderança de Blix. Verifica-se agora que essa intelligence americana e britânica estava errada.
Por isso a oposição britânica pediu um inquérito sobre a discrepância que existe entre os dados da intelligence e a realidade que hoje se conhece, para que se possa avaliar o comportamento do governo. Para que se possa apurar a responsabilidade política decorrente deste facto, que o relatório Hutton não estava habilitado a apurar.
Paralelamente, por sugestão de David Kay e da oposição nos EUA, um inquérito com objecto semelhante é agora pedido naquele país. Não parece ter havido até à data qualquer receptividade por parte do governo de Blair ou de Bush a esta pretensão. E isso é desconcertante. Porque nunca vamos saber ao certo se houve mentira ou engano. E, na eventualidade de engano, se Bush e Blair foram enganados, se se enganaram ou se deixaram enganar. Porque a cada um destes cenários corresponde uma responsabilidade política.
Se foram enganados, há que apurar os responsáveis e corrigir os procedimentos para que tal não volte a acontecer. Se se enganaram, há que retirar as consequências políticas respectivas. Se se deixaram enganar, o caso é mais grave ainda.
De qualquer modo, o que não é sério é ir mudando constantemente as justificações para a intervenção armada. Vir agora dizer que, de qualquer forma o Mundo está melhor sem Saddam, não nos descansa quanto aos motivos e procedimentos políticos que nos empurraram para esta guerra. A verdade é que o Mundo não está melhor. Senão, não não estaríamos ainda hoje a discutir estas questões, um ano quase depois da guerra.
O Mundo também estaria teoricamente melhor sem muitos ditadores no activo. Mas isso não parece chegar para convencer, quer o congresso americano ou Parlamento britânico, a autorizar guerras unilaterais só para depor os ditadores. Tal como diz Edward Kennedy, no seu artigo de 18 janeiro passado no Washington Post, «A Dishonest War», "If Congress and the American people had known the truth, America would never have gone to war in Iraq".
O que é espantoso é que um jornalista como JMF, em editorial no «Público» de ontem, dizer do relatório Hutton que se «tratava de saber se Blair tinha ou não mentido aos ingleses e ao Mundo sobre a existência de armas de destruição maciça no Iraque». Não sendo este o objecto do inquérito, o relatório Hutton não podia ilibar (como pretende JMF) nem deixar de ilibar Blair sobre ter mentido relativamente à existência de armas de destruição maciça no Iraque. Apenas confirma que a declaração dos 45 minutos incluída no relatório do Governo de 2002 fora transcrita de um relatório do SIS. Mas isto não chega para ilibar Blair e o seu Governo quanto à responsabilidade política pela clara discrepância entre os motivos invocados para a invasão do Iraque e a realidade.
Compreende-se que JMF seja «inconscientemente influenciado» pelo seu desejo de encontrar elementos de informação que corroborem a sua conhecida posição a favor da guerra no Iraque. Posição cuja justificação, tal como nos vêm habituando as administrações americana e britânica, vai alterando, como num alvo em movimento. Estará JMF enganado, a ser enganado ou a deixar-se enganar?

João Madureira