quarta-feira, 31 de dezembro de 2003

"Utentes"

A minha nota sobre os utentes dos serviços públicos suscitou alguns comentários em outros blogues, designadamente o próprio J. Pacheco Pereira e também Luis Carmelo no "Miniscente". Aqui fica o registo devido.
Também recebi um mail, que julgo que vale a pena divulgar:

«Sou leitor atento dos blogs Abrupto e Causa Nossa, que estão nos meus favoritos na pasta "blogs" por consideração intelectual pelos seus autores (e concordo com Vital Moreira que o abrupto "está cada vez mais sofisticado em termos gráficos" e acrescento que Pacheco Pereira está de parabéns pela criatividade e cuidado estético além do conteúdo e do modelo interactivo que adoptou).
Mas o que me levou a escrever este comentário foi a troca de posts entre os dois face às noções de utente e consumidor, justamente a propósito da saúde. Talvez discorde de ambos, mas vamos por partes.
No plano da utilização das referidas "comissões de utentes" , nomeadamente pelo PCP com o intuito exclusivo de aproveitamento de um canal de batalha partidária, instrumentalizando as ditas comissões, nos casos que conheço à boa maneira do PC que conhecemos. Por razões profissionais (trabalho em planeamento e desenvolvimento local) dei com casos em que as mesmas pessoas me apareceram em reuniões do sector da saúde, do sector dos transportes, etc. sempre como "representantes" da comissão de utentes do respectivo sector ou ainda de "amigos do hospital x". Não posso aqui discordar mais de Vital Moreira na medida em que não sendo "a paternidade" das comissões de utentes do PCP, aquele partido usa-as , as que pode, como terreno partidário e portanto nesse caso não são "os utentes (...) organizados em "grupos de interesse" com força suficiente para contrabalançar o peso dos sindicatos de funcionários e das ordens profissionais", até porque, muitas vezes, aquelas pessoas nem sequer são "utentes", por exemplo, de transportes públicos, mas estão ali como militantes partidários para ocupar, digamos, "tempo de antena". Ora, não é disto que o exercício da cidadania precisa, a meu ver, mas sim da participação activa dos cidadãos enquanto tal e não enquanto militantes funcionários de um partido com uma lógica que nada tem a ver com a lógica da democracia participativa onde os cidadãos, enquanto tal, exercem direitos e deveres cívicos (citizenship - no sentido de relação jurídica entre o cidadão e o Estado) mas ainda, e disso a nossa democracia é ainda mais deficitária, de uma cidadania "em acção" (citizenry). O trabalho na comunidade local (community work), onde teríamos muito a aprender com experiências locais enraízadas em culturas democráticas como as do norte da américa (EUA e Canadá).
Lá fora, para usar a expressão de Vital Moreira, não se trata de "comissões de utentes", mas sim de cidadãos que assumem na prática, em pleno, essa condição, nomeadamente ao nível territorial de proximidade aos problemas reais e à vida quotidiana dos mesmos cidadãos, isto é, ao nível das respectivas comunidades locais.
No plano dos conceitos de utente e consumidor, no modelo de sociedade e respectiva economia, em que vivemos, é enquanto consumidores que também deveremos exercer a nossa cidadania e não vejo que "venha mal ao mundo" por sermos consumidores, também de serviços públicos, e nessa condição, precisamente, sermos consumidores activos e não meros utentes passivos de um serviço que é visto como obrigação que o Estado tem em prestar aos "utentes de serviços públicos". Numa sociedade em que os cidadãos têm também deveres como contribuintes, entre outros, e aí sim, o Estado tem também deveres face a esses cidadãos, tendo preocupações sociais, nomeadamente, no sentido de conferir poder aos que dele mais afastados estão. Portanto, independentemente de estar ou não de acordo com a forma e o modelo de empresarialização dos hospitais - não é isso que se discute aqui - julgo que a ideia de menorização do nosso papel de consumidor e de valorização do nosso suposto papel de "utente" é errónea. Em primeiro lugar porque o consumidor não é um "simples consumidor", mas é, ou deveria ser cada vez mais, isso sim, um consumidor-cidadão, activo, também, e por maioria de razão, numa economia de mercado, onde o seu papel é crucial ao funcionamento da mesma. Em segundo lugar porque a lógica do consumo inevitavelmente numa sociedade que nele se baseia estendeu-se igualmente aos serviços. Certamente que consumir serviços de saúde, de educação, de cultura, não é equivalente de consumir detergentes, mas também o consumo de obras de arte não é equivalente do consumo de dentífricos, mas nem por isso todos eles deixam de ser práticas de consumo uma vez levadas a efeito no âmbito de uma economia de mercado. E sabemos bem que a produção de serviços de saúde, educação, cultura, etc. se faz, crescentemente, tendo em conta a sua mercadorização, e não vejo que, também por aí, "venha mal ao mundo", assim os critérios de concorrência que a tal obrigam sejam claros e pautados pela optimização da qualidade e excelência face à sua procura no mercado por consumidores cada vez mais informados e exigentes. O que é fundamental é que os direitos e deveres de consumidores e produtores estejam acautelados e que os cidadãos tenham, também enquanto consumidores, crescente poder. Quanto ao "utente" ele parece-me fazer parte de outra era. Justamente uma era em que o cidadão era tratado, no "guichet", como mero utente, sem direitos e apenas com obrigações de reverência face ao Estado. O ideal seria, de facto, caminharmos para uma sociedade de consumidores activos, responsáveis e com poder de exercício activo da sua cidadania. O que precisamos é da expressão organizada dos cidadãos (também como consumidores de serviços públicos e privados) e não de "utentes"...
Em prol de uma nova forma de cidadania que também passa pelos blogs, agradeço pela parte que me toca, antecipadamente, a vossa disponibilidade para o debate de ideias tão escasso no país em que vamos vivendo e apresento-vos, também por isso, os meus melhores cumprimentos "bloguistas"...
Walter Rodrigues
(Docente de Sociologia do ISCTE)»


Agradeço naturalmente esta relevante contribuição. Se houver oportunidade, poderemos voltar ao tema aqui...

VitalM