terça-feira, 30 de dezembro de 2003

O que dizem os outros

1. Imigrantes
Num post de 23 de Dezembro no "Descrédito", Pedro Sá discorda da minha posição, aqui exposta há dias, sobre o direito de voto dos imigrantes, e depois desenvolvida num artigo no Público. Mas o meu ponto de vista não visa conferir privilégios ou conceder um favor aos estrangeiros estabelecidos no nosso País. O que me move é o desejo de criar as condições para uma sociedade mais coesa e mais inclusiva entre nós. Quem beneficiará não são somente os imigrantes, mas sim todos nós. Isto nada tem a ver com desconsideração patriótica, pelo contrário, a não ser sob um ponto de vista serodiamente nacionalista.

2. "Utentes"
No seu Abrupto - cada vez mais sofisticado graficamente - J. Pacheco Pereira discorda da utilização do termo "utentes" para designar as pessoas que recorrem aos serviços de saúde. Considera mesmo "absurdo" isso.
Francamente, não percebo a condenação. O termo "utente" é desde há muito a designação corrente e oficial dos beneficiários dos serviços públicos, entre nós e lá fora. As leis da saúde estão cheias do termo "utentes". A recente lei da entidade reguladora da saúde utiliza a noção nada menos do que 13 vezes. E não é nenhuma excepção. Ao contrário do que sustenta JPP, existe uma diferença essencial entre "utente" e "consumidor", pois aquele designa justamente os que recorrem aos serviços públicos, enquanto o segundo denomina os aquisidores finais de produtos mercantis.
Diz JPP que «esta dos "utentes" e das "comissões de utentes" é puro PCP, que as usa como um prolongamento da acção política e sindical, em particular dirigida contra os hospitais privados». Creio que não tem razão nesta sumária atribuição de paternidade. Mas, ainda que assim fosse, só seria de louvar o PCP. Um dos problemas dos serviços públicos está justamente em que os utentes não estão organizados em "grupos de interesse" com força suficiente para contrabalançar o peso dos sindicatos de funcionários e das ordens profissionais. É tempo de discutir os serviços públicos em função dos utentes e não dos seus agentes. Com o processo em curso de empresarialização e gestão privada dos serviços públicos de saúde corre-se o risco de os utentes serem tratados como simples consumidores, ainda por cima desamparados. Por isso, quanto mais visibilidade tiver a expressão organizada dos utentes, melhor.

3. "Mundo português"
No blogue moçambicano "Ma-schamba", lê-se o seguinte post, que se transcreve, com a devida vénia:

«José Alberto Carvalho é locutor da televisão estatal portuguesa. Nela apresenta o telejornal. Que tenha eu reparado há pelo menos um ano e meio que termina a sua função, algo impante até, com a reclamação de que emitiram para todo "o mundo português". A primeira vez que tal ouvi nem quis acreditar. Foi-o, talvez por coincidência ou talvez não, no momento da conferência de chefes de Estado do CPLP no Brasil. Acredito que entusiasmado por tão magno acontecimento se lembrou ele (ou o editor) de tal expressão: "o mundo português". Terá sido o "inconsciente colectivo"nele(s) brotado, ali a querer apagar a história?
Claro que os mais letrados se podem lembrar de Freyre e do seu "mundo que o português criou". Mas Freyre pode ser lido e relido, e sempre como homem do seu tempo, e arguto, que o caminho dele era bem mais complexo do que lho quiseram dar. E deste Carvalho duvido que leia Freyre, pelo menos com olhos de ler. E duvido ainda mais que seja homem do seu (nosso) tempo. Daí que este "mundo português" do qual se despede, impante repito, todas aquelas noites é-lhe decerto mais parecido com aquele império que se expôs em 1940.
É Carvalho um reaccionário, um saudosista, um revanchista? A querer mudar a história com a sua pequena retoricazita? Não o creio, acho mesmo que é apenas um ignorante e nem tem consciência do que diz. De que é emitido, e por via de acordos entre Estados, para os países africanos que não se consideram "mundo português". E que não o são. (Para bem de todos nós, diga-se.) E países onde tal afirmação constantemente repetida na nossa televisão estatal só pode criar desnecessários anti-corpos, resmungos, mal-estar: pois água dura em pedra mole ...
Má vontade minha com um pequeno pormenor? Um episódio ridículo do corropio de ignorância, bem sonora a televisiva? Não acho. Trata-se da televisão pública, da informação estatal. Pode não ser a voz do dono (e francamente acho que não o é, já a vi bem mais seguidista), mas no estrangeiro representa o poder, a sociedade. Percepção que se reforça, naturalmente, em países onde a informação é ainda mais dependente do poder político do que a nossa o é, o que molda a visão que têm das outras.»


O forma poderia ser mais cuidada, mas o argumento está bem colocado e é procedente.

Vital Moreira