quarta-feira, 31 de dezembro de 2003

Leituras do ano velho para iniciar o ano novo

Gostaria de compartilhar algumas das minhas leituras preferidas dos últimos dias.

No website britânico Opendemocracy (já o tem nos seus "favoritos"?) a antiga presidente da Irlanda e Alta Comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Mary Robinson, expende numa cativante entrevista a sua visão sobre os direitos humanos na actualidade. A não perder por quem se interessa pela sorte do mundo.


No "New York Review of Books" Henry Siegman analisa as manigâncias de Sharon na guerra de Israel contra os palestinianos e o papel que incumbe aos Estados Unidos na matéria. Essencial para perceber o que está em jogo. Do melhor que se tem escrito sobre o assunto.

No "Público" de sábado passado o Professor Jorge Miranda critica o processo de revisão constitucional recentemente desencadeado e analisa criticamente o conteúdo dos vários projectos. Uma voz autorizada e independente. Imprescindível.

Ainda no "Público" de domingo António Barreto analisa e condena a "semi-privatização" do notariado entre nós, não pela privatização da função mas sim pela incongruência da operação, que só beneficia os notários, sem qualquer vantagem para os utentes, além de lesar as finanças públicas. Impiedoso retrato de uma «operação absurda». Digno de aplauso.

No "Diário de Notícias" de 2ª feira, grande entrevista de Eduardo Lourenço sobre ele mesmo, Portugal, a Europa e o resto.
Uma amostra: «Quais os tempos de que Eduardo Lourenço tem mais saudades?
Os que hão-de vir e onde eu não estarei»
.
Eduardo Lourenço nunca é banal. Leia o resto!


Nos intervalos dos seus artigos beatos e/ou ideologicamente arqueológicos no "Diário de Notícias", João César das Neves, pode produzir textos clarividentes e bem-humorados. É o caso do artigo de 2ª feira, a propósito do recente Congresso da Justiça, uma bem conseguida "charge" sobre os congressos profissionais, nos quais se exalta sistematicamente a importância das profissões, o zelo público dos profissionais e a culpa dos governos e dos utentes pelo mau estado do respectivo sector.

Bom proveito! E bom ano novo!

Vital Moreira

"Utentes"

A minha nota sobre os utentes dos serviços públicos suscitou alguns comentários em outros blogues, designadamente o próprio J. Pacheco Pereira e também Luis Carmelo no "Miniscente". Aqui fica o registo devido.
Também recebi um mail, que julgo que vale a pena divulgar:

«Sou leitor atento dos blogs Abrupto e Causa Nossa, que estão nos meus favoritos na pasta "blogs" por consideração intelectual pelos seus autores (e concordo com Vital Moreira que o abrupto "está cada vez mais sofisticado em termos gráficos" e acrescento que Pacheco Pereira está de parabéns pela criatividade e cuidado estético além do conteúdo e do modelo interactivo que adoptou).
Mas o que me levou a escrever este comentário foi a troca de posts entre os dois face às noções de utente e consumidor, justamente a propósito da saúde. Talvez discorde de ambos, mas vamos por partes.
No plano da utilização das referidas "comissões de utentes" , nomeadamente pelo PCP com o intuito exclusivo de aproveitamento de um canal de batalha partidária, instrumentalizando as ditas comissões, nos casos que conheço à boa maneira do PC que conhecemos. Por razões profissionais (trabalho em planeamento e desenvolvimento local) dei com casos em que as mesmas pessoas me apareceram em reuniões do sector da saúde, do sector dos transportes, etc. sempre como "representantes" da comissão de utentes do respectivo sector ou ainda de "amigos do hospital x". Não posso aqui discordar mais de Vital Moreira na medida em que não sendo "a paternidade" das comissões de utentes do PCP, aquele partido usa-as , as que pode, como terreno partidário e portanto nesse caso não são "os utentes (...) organizados em "grupos de interesse" com força suficiente para contrabalançar o peso dos sindicatos de funcionários e das ordens profissionais", até porque, muitas vezes, aquelas pessoas nem sequer são "utentes", por exemplo, de transportes públicos, mas estão ali como militantes partidários para ocupar, digamos, "tempo de antena". Ora, não é disto que o exercício da cidadania precisa, a meu ver, mas sim da participação activa dos cidadãos enquanto tal e não enquanto militantes funcionários de um partido com uma lógica que nada tem a ver com a lógica da democracia participativa onde os cidadãos, enquanto tal, exercem direitos e deveres cívicos (citizenship - no sentido de relação jurídica entre o cidadão e o Estado) mas ainda, e disso a nossa democracia é ainda mais deficitária, de uma cidadania "em acção" (citizenry). O trabalho na comunidade local (community work), onde teríamos muito a aprender com experiências locais enraízadas em culturas democráticas como as do norte da américa (EUA e Canadá).
Lá fora, para usar a expressão de Vital Moreira, não se trata de "comissões de utentes", mas sim de cidadãos que assumem na prática, em pleno, essa condição, nomeadamente ao nível territorial de proximidade aos problemas reais e à vida quotidiana dos mesmos cidadãos, isto é, ao nível das respectivas comunidades locais.
No plano dos conceitos de utente e consumidor, no modelo de sociedade e respectiva economia, em que vivemos, é enquanto consumidores que também deveremos exercer a nossa cidadania e não vejo que "venha mal ao mundo" por sermos consumidores, também de serviços públicos, e nessa condição, precisamente, sermos consumidores activos e não meros utentes passivos de um serviço que é visto como obrigação que o Estado tem em prestar aos "utentes de serviços públicos". Numa sociedade em que os cidadãos têm também deveres como contribuintes, entre outros, e aí sim, o Estado tem também deveres face a esses cidadãos, tendo preocupações sociais, nomeadamente, no sentido de conferir poder aos que dele mais afastados estão. Portanto, independentemente de estar ou não de acordo com a forma e o modelo de empresarialização dos hospitais - não é isso que se discute aqui - julgo que a ideia de menorização do nosso papel de consumidor e de valorização do nosso suposto papel de "utente" é errónea. Em primeiro lugar porque o consumidor não é um "simples consumidor", mas é, ou deveria ser cada vez mais, isso sim, um consumidor-cidadão, activo, também, e por maioria de razão, numa economia de mercado, onde o seu papel é crucial ao funcionamento da mesma. Em segundo lugar porque a lógica do consumo inevitavelmente numa sociedade que nele se baseia estendeu-se igualmente aos serviços. Certamente que consumir serviços de saúde, de educação, de cultura, não é equivalente de consumir detergentes, mas também o consumo de obras de arte não é equivalente do consumo de dentífricos, mas nem por isso todos eles deixam de ser práticas de consumo uma vez levadas a efeito no âmbito de uma economia de mercado. E sabemos bem que a produção de serviços de saúde, educação, cultura, etc. se faz, crescentemente, tendo em conta a sua mercadorização, e não vejo que, também por aí, "venha mal ao mundo", assim os critérios de concorrência que a tal obrigam sejam claros e pautados pela optimização da qualidade e excelência face à sua procura no mercado por consumidores cada vez mais informados e exigentes. O que é fundamental é que os direitos e deveres de consumidores e produtores estejam acautelados e que os cidadãos tenham, também enquanto consumidores, crescente poder. Quanto ao "utente" ele parece-me fazer parte de outra era. Justamente uma era em que o cidadão era tratado, no "guichet", como mero utente, sem direitos e apenas com obrigações de reverência face ao Estado. O ideal seria, de facto, caminharmos para uma sociedade de consumidores activos, responsáveis e com poder de exercício activo da sua cidadania. O que precisamos é da expressão organizada dos cidadãos (também como consumidores de serviços públicos e privados) e não de "utentes"...
Em prol de uma nova forma de cidadania que também passa pelos blogs, agradeço pela parte que me toca, antecipadamente, a vossa disponibilidade para o debate de ideias tão escasso no país em que vamos vivendo e apresento-vos, também por isso, os meus melhores cumprimentos "bloguistas"...
Walter Rodrigues
(Docente de Sociologia do ISCTE)»


Agradeço naturalmente esta relevante contribuição. Se houver oportunidade, poderemos voltar ao tema aqui...

VitalM

terça-feira, 30 de dezembro de 2003

O que dizem os outros

1. Imigrantes
Num post de 23 de Dezembro no "Descrédito", Pedro Sá discorda da minha posição, aqui exposta há dias, sobre o direito de voto dos imigrantes, e depois desenvolvida num artigo no Público. Mas o meu ponto de vista não visa conferir privilégios ou conceder um favor aos estrangeiros estabelecidos no nosso País. O que me move é o desejo de criar as condições para uma sociedade mais coesa e mais inclusiva entre nós. Quem beneficiará não são somente os imigrantes, mas sim todos nós. Isto nada tem a ver com desconsideração patriótica, pelo contrário, a não ser sob um ponto de vista serodiamente nacionalista.

2. "Utentes"
No seu Abrupto - cada vez mais sofisticado graficamente - J. Pacheco Pereira discorda da utilização do termo "utentes" para designar as pessoas que recorrem aos serviços de saúde. Considera mesmo "absurdo" isso.
Francamente, não percebo a condenação. O termo "utente" é desde há muito a designação corrente e oficial dos beneficiários dos serviços públicos, entre nós e lá fora. As leis da saúde estão cheias do termo "utentes". A recente lei da entidade reguladora da saúde utiliza a noção nada menos do que 13 vezes. E não é nenhuma excepção. Ao contrário do que sustenta JPP, existe uma diferença essencial entre "utente" e "consumidor", pois aquele designa justamente os que recorrem aos serviços públicos, enquanto o segundo denomina os aquisidores finais de produtos mercantis.
Diz JPP que «esta dos "utentes" e das "comissões de utentes" é puro PCP, que as usa como um prolongamento da acção política e sindical, em particular dirigida contra os hospitais privados». Creio que não tem razão nesta sumária atribuição de paternidade. Mas, ainda que assim fosse, só seria de louvar o PCP. Um dos problemas dos serviços públicos está justamente em que os utentes não estão organizados em "grupos de interesse" com força suficiente para contrabalançar o peso dos sindicatos de funcionários e das ordens profissionais. É tempo de discutir os serviços públicos em função dos utentes e não dos seus agentes. Com o processo em curso de empresarialização e gestão privada dos serviços públicos de saúde corre-se o risco de os utentes serem tratados como simples consumidores, ainda por cima desamparados. Por isso, quanto mais visibilidade tiver a expressão organizada dos utentes, melhor.

3. "Mundo português"
No blogue moçambicano "Ma-schamba", lê-se o seguinte post, que se transcreve, com a devida vénia:

«José Alberto Carvalho é locutor da televisão estatal portuguesa. Nela apresenta o telejornal. Que tenha eu reparado há pelo menos um ano e meio que termina a sua função, algo impante até, com a reclamação de que emitiram para todo "o mundo português". A primeira vez que tal ouvi nem quis acreditar. Foi-o, talvez por coincidência ou talvez não, no momento da conferência de chefes de Estado do CPLP no Brasil. Acredito que entusiasmado por tão magno acontecimento se lembrou ele (ou o editor) de tal expressão: "o mundo português". Terá sido o "inconsciente colectivo"nele(s) brotado, ali a querer apagar a história?
Claro que os mais letrados se podem lembrar de Freyre e do seu "mundo que o português criou". Mas Freyre pode ser lido e relido, e sempre como homem do seu tempo, e arguto, que o caminho dele era bem mais complexo do que lho quiseram dar. E deste Carvalho duvido que leia Freyre, pelo menos com olhos de ler. E duvido ainda mais que seja homem do seu (nosso) tempo. Daí que este "mundo português" do qual se despede, impante repito, todas aquelas noites é-lhe decerto mais parecido com aquele império que se expôs em 1940.
É Carvalho um reaccionário, um saudosista, um revanchista? A querer mudar a história com a sua pequena retoricazita? Não o creio, acho mesmo que é apenas um ignorante e nem tem consciência do que diz. De que é emitido, e por via de acordos entre Estados, para os países africanos que não se consideram "mundo português". E que não o são. (Para bem de todos nós, diga-se.) E países onde tal afirmação constantemente repetida na nossa televisão estatal só pode criar desnecessários anti-corpos, resmungos, mal-estar: pois água dura em pedra mole ...
Má vontade minha com um pequeno pormenor? Um episódio ridículo do corropio de ignorância, bem sonora a televisiva? Não acho. Trata-se da televisão pública, da informação estatal. Pode não ser a voz do dono (e francamente acho que não o é, já a vi bem mais seguidista), mas no estrangeiro representa o poder, a sociedade. Percepção que se reforça, naturalmente, em países onde a informação é ainda mais dependente do poder político do que a nossa o é, o que molda a visão que têm das outras.»


O forma poderia ser mais cuidada, mas o argumento está bem colocado e é procedente.

Vital Moreira

Blogposts nocturnos (3)

1. O indulto presidencial
O indulto presidencial (uma pequena redução da pena) conferido à enfermeira que foi condenada há anos por prática de abortos ilegais, no célebre caso da Maia, foi criticado pelo CDS-PP - que tem dado ao Governo uma marca ideológica caracteristicamente de direita-, argumentando que o PR dá um «mau sinal» no momento em que se discute de novo a questão da despenalização do aborto.
Mas o argumento de que o Presidente teria querido favorecer a posição despenalizadora não faz muito sentido, pois, como já foi assinalado por alguns comentadores, o Presidente indultou pessoas condenadas por vários outros crimes, sem que isso possa ser interpretado no sentido de favorecer a respectiva despenalização. Mas, ainda que fosse esse o seu propósito, o PR está no seu pleno direito de enviar as mensagens que entenda nesta matéria.
O que é totalmente descabido é considerar, a este propósito, que «certos aspectos da democracia causam urticária a este PR», como se lê surpreendentemente no "Mar Salgado" . Ele há afirmações verdadeiramente infelizes...

2. As contradições de Saraiva
A trivial (e errada) teoria instrumental do director do "Expresso" (link indisponível) - segundo a qual a penalização do aborto não tem por objectivo punir mas sim prevenir o aborto - tem duas óbvias ilações: primeiro, quanto mais severa for a penalização, maior será a prevenção; segundo, a penalização supre a falta dos demais mecanismos de prevenção (educação sexual, etc.). E se a realidade desmente a teoria, demita-se a realidade...
Defendendo a penalização, ainda que somente pelos seus efeitos dissuasores, J. A. Saraiva não tem sequer a vantagem da coerência sobre muitos outros defensores do "status quo", que tal como ele incorrem no contra-senso de rejeitar a despenalização protestando logo depois que não querem ver as mulheres condenadas por aborto. É preciso ler para se acreditar: «Finalmente, é necessário ter em conta que uma coisa é a lei e outra a aplicação da lei. (...) Ninguém, entre os que defendem a despenalização e os que não aceitam, quer que as mulheres que abortam sejam condenadas».
Mas como é que se pode defender a criminalização e depois desejar a impunidade? E como é que a penalização poderia ter efeitos preventivos, se não houvesse punição? É logicamente evidente que quem não quer a condenação não pode defender a penalização. E, vice-versa, que quem se opõe à despenalização não pode não querer a condenação.

3. A desregulação da saúde
A investigação do "Público" sobre a situação das clínicas privadas entre nós não podia ser mais inquietante. A maior parte delas não se encontram licenciadas, como exige a lei, e as necessárias inspecções não têm sido feitas. Num sector essencial e melindroso, como os cuidados de saúde, reina há muito a anomia e um mercado sem qualquer regulação. Esta situação só pode reverter contra os utentes.
São seguramente os interesses apostados em preservar esta situação que se têm manifestado contra a extensão dos poderes da nova entidade reguladora da saúde (ERS) ao sector privado e social, para garantir os direitos dos utentes e o cumprimento das regras de qualidade e de segurança. Seria muito interessante investigar as ligações entre os críticos da ERS e os interesses das clínicas privadas...

4. Centros de decisão nacional (CDN)
Não é preciso ser marxista ou ter sido influenciado pelo pensamento marxista para considerar que com as alavancas da economia dominadas pelo capital estrangeiro não existe verdadeira soberania nacional. Por isso é importante o alerta de Artur Santos Silva, o prestigiado presidente do BPI, numa entrevista no "Jornal de Notícias", do Porto, chamando a atenção para o perigo das crescentes transferências do centros de decisão económica nacionais para Espanha.
Dois excertos:
«(...) é desígnio nacional de primeira importância o de conservarmos em mãos portuguesas o controlo das principais empresas nacionais».
«Há muitas empresas portuguesas que têm sido compradas por interesses espanhóis. Não conheço nenhum país da Europa em que haja no sistema financeiro tanta influência de um país como a Espanha tem em Portugal.»
A ler com a preocupação que o tema merece e a justa autoridade do seu autor justifica.

5. "Socialistas católicos"
Sempre que o PS toma oficialmente alguma posição divergente em relação aos interesses ou posições da Igreja Católica, é inevitável o aparecimento de um comunicado de um tal grupo de "jovens socialistas católicos", a criticar a orientação do Partido. Assim sucedeu agora mais uma vez a propósito da despenalização do aborto. Aparentemente, não se trata de uma quinta coluna do Patriarcado no Largo do Rato, nem de uma solerte receita interna para dar uma no cravo e outra na ferradura, de modo a contentar todas as "constituencies"...
É mais do que natural que haja muitos católicos nas fileiras do PS, um partido claramente "transversal" sob o ponto de vista sociológico, religioso, etc. O que é menos evidente é a pertinência de uma tendência organizada de invocação explicitamente religiosa num partido tradicionalmente e oficialmente laico, que por isso mesmo pode ter de adoptar posições discrepantes com os pontos de vista confessionais (separação das Igrejas e do Estado, aconfessionalidade da escola pública, despenalização do aborto, etc.). Seria de esperar que o PS tivesse aprendido a lição da falta de zelo laico do seu anterior secretário-geral e primeiro-ministro em algumas dessas questões.
Para além disso, se o PS admite a organização de uma tendência católica no seu seio, com exteriorização de opiniões próprias nessa qualidade, não se vê como poderá no futuro não consentir igualmente tendências evangélicas, judaicas, muçulmanas, etc. Não é difícil antecipar o grau de coesão política e doutrinária de um partido assim...

Vital Moreira

The Great Pretender

Já conversei com muita gente que se opõe à despenalização do aborto. Conheço os seus argumentos. A maior parte das vezes, deve dizer-se, a oposição nem sequer é à despenalização, mas sim ao aborto, ele mesmo, o que é totalmente diferente. Mas há efectivamente quem entenda que o aborto deve ser crime e punido como tal, incluindo com a prisão. Mesmo assim, uma argumentação pró-penalização como a que desenvolveu esta semana José António Saraiva no seu editorial no Expresso confesso que nunca tinha visto escrita. Deixou-me sem palavras. Fugiram-me os argumentos. Em suma, rendi-me!

E eu que há anos me preocupo com o modo de resolver o excesso de dívidas no sistema judicial vi-me, de repente, perante a solução. Re-criminalizem-se! Assim daremos um sinal aos milhares de devedores de contas à TV Cabo, prémios de seguros e telemóveis. E depois, caros Juízes, aos poucos que, mesmo assim, perante sinal tão forte, ousarem prevaricar, obviamente absolvam-nos ou melhor: esqueçam-se do processo debaixo da secretária. (Mesmo os mais cumpridores dos cidadãos não entenderiam, é claro, que se mandasse alguém para a prisão por causa de dívidas!).

Eduardo Prado Coelho defendeu que esta proposta de JAS não passava de um delírio semafórico. Cá para mim, não percebeu que assim ficamos todos felizes: abortar é crime, mas só no papel. No tribunal, não é. Mais ou menos como os impostos para certos contribuintes: devem pagar-se, mas não se pagam e depois -, depois não lhes acontece nada.

Uma magnífica solução esta do 'faz de conta', sobretudo vinda de quem, como JAS, se diz preocupado com a crise de valores! (Fico a pensar no que proporia, se não estivesse). Merece o prémio de Grande Fingidor.

Maria Manuel Leitão Marques

segunda-feira, 29 de dezembro de 2003

Resposta ao Pedro Mexia

Sabes que tenho de ti a ideia de um homem livre. Isso parece-me o essencial, o resto é mais ou menos acessório. Mesmo que o resto passe por um mundo de diferenças ideológicas e culturais. Os meus companheiros neste blog reconhecem nas tuas opiniões, talvez com uma ou outra reticência ou desconhecimento, as marcas dessa liberdade. Que, na minha opinião, não é um valor estritamente de esquerda. Posto isto, a nossa pequena polémica. Isto é: sobre a tua resposta ao meu texto do passado 17 de Dezembro gostaria de dizer algumas coisas.
O teu texto relativiza as coisas de uma forma tão surpreendentemente excessiva que acabou por me soar a falso. Não que o que lá vem seja inverdade, mas porque não acredito que percas horas e horas do teu tempo apenas para desabafar convicções e lamentos pessoais. É verdade que os blogs têm a importância que têm, como em boa verdade tudo o resto. Aquilo que escreves no Dicionário do Diabo não são desabafos do teu diário, são antes de mais ideias, convicções e raivas que queres partihar com o maior número de pessoas que te for possível alcançar. É uma forma de poder como outra qualquer e, caro Pedro, nunca me viste dizer que os blogs chegam a muita gente. Creio que chego a utilizar a expressão pequena comunidade intelectual. Teres quase mil leitores por dia, quase mil pessoas que lêem o que pensas sobre as tuas raparigas distantes ou a economia de mercado é um número mais do que suficiente enquanto pequeno espaço de poder e de referência numa pequena comunidade... Que é, aliás, a pequena comunidade em que te moves/nos movemos. É essa que nos interessa, são esses os holofotes de que falo, é dessa vaidade natural que quase todos renegamos e que todos acabamos por querer tocar. Também não é nada de especial, quando falo de holofotes falo da necessidade de ser ouvido, lido, olhado, falo da terrível necessidade de ser amado, de deixar uma marca no futuro.
No meu texto provocatório escolhi pessoas que levam a sério este princípio de luta. E, sobretudo, pessoas que através dos blogs encontraram uma forma de expressão e de poder capaz de lhes garantir alguma visibilidade e alguns adeptos.
Falas da intimidade. E misturas, como o Daniel Oliveira, as minhas opiniões com pretensos ataques ao documentário e livro que fiz com o meu pai. Não pretendo justificar rigorosamente nada, até porque as opiniões podem ser positivas ou negativas, mas por dentro as minhas urgências são, para o bem e para o mal, as minhas e não as dos outros. De qualquer forma, o documentário sobre o meu pai não é um filme sobre a minha intimidade. Não se pode fazer algo de íntimo quando não se conhece o outro, quando o outro viveu uma vida que não conheci, quando o outro nunca fez parte das minhas prioridades e do meu espaço. Achei que o facto de o "personagem" ser meu pai poderia tornar-se, claramente, uma mais valia para falar de algumas ideias que me interessam muito no cinema, teatro ou no próprio jornalismo: a ausência, o heroísmo do looser, a encenação manipulatória do real, a provocação do olhar e das regras estabelecidas. Estou arrependido de o ter feito, mas por outros motivos completamente diferentes.
Falas dos ataques na blogosfera para provar que este "submundo virtual" pode ser muito desagradável. Não acredito que dês importância às críticas que te fazem, críticas obviamente que passem as fronteiras da indigência. É que não têm mesmo importância nenhuma.
Não concordo contigo sobre a questão de as pessoas dizerem coisas diferentes conforme o suporte onde estão inseridas. Evidentemente todos somos utilizadores de máscaras, mas dizer coisas diferentes em contextos diferentes parece-me contraditório com tudo o que julgo seres. O que podes fazer é escrever tendo em conta os objectivos específicos de cada trabalho, mas os objectivos específicos de cada trabalho não ferem o fundamento da coerência que deve ser o suporte de que és feito por dentro. Não consigo desligar a crítica que fazes ao José Saramago no DN com os textos sobre as meninas distantes no teu blog, ou com as tuas opiniões quando participas em debates. Um bom ano do

Luís Osório

domingo, 28 de dezembro de 2003

Coimbra desencantada

1. Coimbra capital
Encerrou oficialmente o programa de "Coimbra - Capital Nacional da Cultura", uma iniciativa do precedente Governo Socialista que o actual Governo PSD-PP não enjeitou. Foi um importante acontecimento. Coimbra não era capital de nada (para além de "capital do amor em Portugal", como diz a canção) desde que, no início da nacionalidade (D. Afonso II ?), a corte mudou para Lisboa, deixando para trás o palácio real da alcáçova coimbrã, que no entanto só seria doado à Universidade em 1537.
Sem ser deslumbrante, o programa não deslustrou. Mostrou capacidade de organização e gestão a nível local e regional, trouxe à luz do dia um património artístico mal conhecido, atraiu novos públicos para iniciativas culturais, revelou ou confirmou agentes culturais locais, deixou numerosas publicações valiosas (conferências, actas de colóquios, catálogos de exposições, etc.), proporcionou a abertura de novos espaços, embora não construídos em vista do programa da "Capital da Cultura".
Oxalá que alguns dos eventos possam ser institucionalizados doravante como elementos permanentes da programação cultural da cidade, como, por exemplo, a feira do património ou a "Coimbra vibra", porventura o êxito mais popular do programa.

2. Coimbra e Lisboa
Como cidade universitária sem capacidade de absorção dos quadros que ela forma, Coimbra exporta grande parte dos graduados que saem da sua universidade. A maior parte deles ruma naturalmente para a capital. Como é próprio das universidades tradicionais, muitos dos antigos estudantes de Coimbra mantêm uma forte ligação afectiva à cidade, mesmo quando não é a sua terra natal. Recentemente, no blogue Mar Salgado, com forte peso de "coimbrinhas" emigrados, dois deles vieram exprimir os seus sentimentos em relação a Lisboa. Enquanto Vasco Lobo Xavier, agora no Porto, exterioriza a sua animosidade contra Lisboa, Nuno Mota Pinto, por sua vez, manifesta as suas saudades da capital do reino, revendo-se num poema elegíaco de António Botto. Nisto não há défice de pluralismo ...

3. Os políticos e os cientistas
Na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra foi justamente festejada a atribuição do prémio Pessoa ao professor J. J. Gomes Canotilho, personalidade ilustre e orgulho da Casa. Não faltou quem extrapolasse o significado do prémio. Depois da jactância do Primeiro-Ministro, gabando-se do monopólio de licenciados pela Faculdade de Direito de Lisboa nos mais altos cargos do poder, houve quem observasse, parafraseando Max Weber, que enquanto Lisboa forma políticos Coimbra forma cientistas...

Vital Moreira

sábado, 27 de dezembro de 2003

Causas do quotidiano (por causa do telemóvel)

Ninguém duvida que os telemóveis nos facilitaram enormemente a comunicação à distância, revolucionando os nossos comportamentos nesse domínio. Importa agora assegurar que essa revolução não destrua a tão preciosa comunicação de proximidade.

Todos nós tivemos de aprender pequenas regras de bom comportamento como a de não cantar à mesa, estar calado no cinema, não telefonar aos amigos às horas das refeições, não ver televisão durante o jantar, etc. etc. Por razões óbvias, nenhuma delas inclui o modo de utilizar telemóvel, mas devidamente adaptadas talvez sirvam para esse efeito.

Inspirada pelos horrores presenciados no jantar deste Natal, sugiro sete mandamentos, reservando mais três para a vossa imaginação:
1. Não convidarás o telemóvel para a ceia de Natal e só lhe permitirás entrar na sala depois de abertos todos os presentes
2. Não comerás o telemóvel, quero dizer, com o telemóvel
3. Não farás da mesa de jantar uma caixa de correio
4. Não dormirás com o telemóvel na cama ou na mesa-de-cabeceira
5. Não deixarás o telemóvel (por muito grande que seja a tentação) interromper gratuitamente uma conversa entre amigos, manifestar-se no cinema ou mesmo perturbar a mais aborrecida das conferências
6. Não farás do telemóvel o teu instrumento exclusivo de lazer
7. Nunca te esquecerás que o telemóvel, afinal, é apenas um telefone e não o teu bebé acabado de nascer!


Mesmo sendo uma causa muito particular, esta é uma causa que vale a pena discutir, ainda que prevenindo os interessados que muito provavelmente será uma causa perdida!

Maria Manuel Leitão Marques

Saudades de Goa (um post com sabor a rabanada)

Na estrada para o Forte de Aguada, em Goa, há uma loja muito atraente com o inesperado nome de "Saudades"
.
Aí se encontra mobiliário indo-português numa antiga moradia com entrada colunada. Se estivesse em Goa, compraria lá o meu presente de Natal.
E no dia 25 de manhã, subiria ao miradouro da capela de Nossa Senhora do Monte, magnificamente recuperada pela Fundação Oriente. De lá se avistam as igrejas brancas de Velha Goa meio afundadas no palmar. Adormecida pela serena contemplação que o lugar tanto proporciona, quem sabe se não veria Siva cair do céu (ou emergir do Mandovi) com o Menino Jesus ao colo. Cá em baixo à sua espera, no jardim em frente à Sé, estariam com certeza mulheres de saris bordados e homens de camisa branca, enfeitados com colares de flores como os dos templos hindus. Assim os encontrei a todos na festa de S. Francisco Xavier, no dia 3 de Dezembro, misturando cultos, crenças e tradições como gostaríamos que sempre acontecesse. Neste Natal, tive saudades de Goa por tudo isto e muito mais.

Maria Manuel Leitão Marques

Excelências

Ou me engano muito - mas, infelizmente, temo que neste caso o risco de engano é cada vez menor - ou o processo Casa Pia vai acabar da pior forma possível. Sem apuramento da verdade dos factos, sem condenação dos culpados e sem absolvição efectiva dos arguidos cuja presunção de inocência foi transformada em presunção de culpa. Se tudo isto acontecer, também as vítimas dos abusos sexuais não verão reparada a ofensa monstruosa que as atingiu na carne e no espírito. E o descrédito da Justiça atingirá um ponto tal que ameaça pôr decisivamente em causa a confiança dos cidadãos no Estado de direito.
As sucessivas tropelias do Ministério Público e do juiz de instrução parecem não ter fim e, ainda agora, continuam a não ser respeitadas as normas impostas pelo Tribunal da Relação no sentido de os arguidos serem informados concretamente dos crimes que lhes são imputados. O entendimento que o procurador João Guerra e o juiz Rui Teixeira têm dos direitos constitucionais resume-se a uma abstracção kafkiana.
Enquanto tudo isto se passa, não faltam, porém, outros motivos de espanto. Numa entrevista à revista Visão, o advogado do embaixador Ritto, Rodrigo Santiago, conta que por pouco não chegou a vias de facto com o juiz Rui Teixeira. Este teria percebido (mal) que o advogado não lhe chamara "Vossa excelência" mas apenas "você" e acusou Santiago de ser "malcriado". O advogado ripostou-lhe na mesma moeda e seguiu-se uma cena de berraria que, por um triz, não descambou em troca de argumentos físicos, segundo a versão de Santiago.
Já se sabia que vivíamos num país de dinossauros excelentíssimos, mas quando as coisas atingem este nível patético de ridículo institucional nas relações entre pessoas civilizadas, que nos resta senão regressar à selva? Talvez aí as nossas empertigadas excelências encontrem o seu elemento natural.
Vicente Jorge Silva

As torres de Alcântara

Ei-la instalada e lamentavelmente politizada, a polémica dos "arranha-céus de Alcântara". Com a excepção de Miguel Sousa Tavares, a cuja opinião livre e conhecedora não se poderão assacar intuitos desonestos, o que se prefigura é uma batalha tonta e sectária onde a causa da cidade e os interesses dos lisboetas serão sacrificados em prol das conveniências tácticas dos políticos alfacinhas.
Nunca tínhamos visto uma campanha de outdoors, paga com dinheiros municipais, para contrariar a putativa argumentação dos opositores a um dado projecto. Nesta matéria, Santana Lopes faz do erário municipal um uso mais do que duvidoso à luz da transparência, da ética e do rigor. Também não é certo que os seus detractores sejam mais escrupulosos.
Tal como abracei a causa da FLOPES e de qualquer outra que se proponha elevar Lisboa à condição de cidade - ordenada, bonita e solidária -, manifesto o meu apoio ao projecto das torres de Alcântara.
Não me choca a altura, desde que enquadrada num tecido urbano e numa malha arquitectónica coerente. Prefiro uma Alcântara com menos edifícios e mais espaço circundante, desde que a estética satisfaça. Prefiro três torres de Siza Vieira a uma qualquer urbanização densa, em "condomínio fechado", igual às do Barreiro ou do Cacém, sem zonas verdes, sem originalidade, sem espaço de circulação, sem ligação à cidade.
Não receio pelas questões "técnicas" e hortícolas invocadas pelo arqº Ribeiro Teles. Afinal, não há nada pior que o actual estado de impermeabilização dos terrenos de Alcântara, nem se adivinha nenhuma solução "ecológica" capaz de contentar os interesses de todos. Não receio pelo prejuízo estético para as gentes de Alcântara. Pelo contrário. Tal como se apresenta, o jogo das três torres só valoriza o velho bairro, acrescentando-lhe beleza e atributos. Acredito no arrojo e na qualidade.
Ninguém quer Lisboa transformada em Kuala-Lumpur, mas a perspectiva de uma cidade pequeno-burguesa, sem ambição nem arrojo, conformada com a sua (questionável) aura do passado, não me seduz.

Luís Nazaré

quinta-feira, 25 de dezembro de 2003

Histórias edificantes

Antigos aliados
No Independent de Londres lê-se que no tempo do Presidente Reagan, quando os Estados Unidos apoiavam o Iraque na sua guerra contra o Irão, o actual ministro da defesa de Bush, Rumsfeld, foi enviado a Bagdad para manifestar o apoio a Saddam, mesmo depois de este ter usado armas químicas em larga escala. Vale a pena ler. Os documentos agora revelados, em que se baseia a notícia, confirmam outros dados que já eram do conhecimento público sobre as relações dilectas entre os dois governos.
Percebe-se agora melhor por que é que os Estados Unidos se apressaram a defender que Saddam deve ser julgado rapidamente no Iraque por um tribunal ad hoc montado pelo governo instalado pelas forças de ocupação, e não por um tribunal internacional isento. É evidente que desse modo há muito menos riscos de virem à luz esta e outras histórias sórdidas da primitiva amizade entre a Casa Branca e a ditadura de Bagdad...

Terrorismo inverso
Noticia o Público, citando fontes israelitas, que vários elementos de uma unidade de elite do exército israelita anunciaram a sua recusa em participarem nas operações de 'contra-terrorismo' nos territórios palestinianos ocupados, por entenderem não dever continuar a ser responsáveis por 'um regime de opressão que espezinha os direitos de milhões de palestinianos'.
As acções de verdadeiro terrorismo das forças de ocupação israelitas só não as vê quem só quer ver as dos extremistas palestinianos. Ainda ontem uma operação matou 8 palestinianos e fez arrasar por bulldozer várias casas. Enquanto a violência palestiniana é da responsabilidade de grupos 'irregulares', com a condenação da Autoridade palestiniana, a violência israelita é uma deliberada política oficial do Governo, levada a cabo por forças militares regulares (embora secundadas ocasionalmente por milícias de colonos israelitas).
Não é por acaso que Israel, tal como os Estados Unidos, rejeitou a jurisdição do Tribunal Penal Internacional. Muito provavelmente os seus dirigentes políticos e militares poderiam vir a ser acusados de crimes contra a humanidade.

quarta-feira, 24 de dezembro de 2003

Adiro

Caro Luís Nazaré, adiro já à FLOPES. É uma questão de me dizeres quando e onde me apresento. Sabes que nestas vésperas de Natal sinto a falta de muitas pessoas, a larguíssima maioria por motivos mais do que óbvios. Mas o pior que me podia acontecer, coisa estranha e perturbante, é sentir a falta de João Soares.
Aproveito este breve post para propor a leitura do texto do Miguel Romão sobre os seus preparativos de Natal. Simplesmente excelente.
E depois dizer ao Pedro Mexia e ao meu amigo Daniel Oliveira que o meu comentário aos seus textos sobre a candente questão dos holofotes será uma agradável prioridade. Acontece que só agora os li e o Natal espera-me. Um abraço grande
Luís Osório

FLOPES

Eu sei que é Natal. Deveríamos todos comungar de um estado de compreensão e harmonia ecuménica. Mas para aqueles que, como eu, se vêem obrigados a circular diariamente em Lisboa, a quadra natalícia é um perfeito inferno de Dante. Em nenhum outro período do ano a desordem automobilística atinge tal expressão. A praga do estacionamento abusivo transformou-se num fenómeno insuportável. As famigeradas segunda e terceira fila, a invasão dos passeios, as cargas e descargas a qualquer hora em qualquer lugar, estão a tornar Lisboa num centro de ineficiência, para desespero dos munícipes e dos agentes económicos. Em nenhuma cidade neolítica do planeta - do Cairo a Nova Iorque, de São Paulo a Xangai - se verifica uma selvajaria de tais proporções.

Por isso me lembrei de propor à blogosfera um brinde natalício. As minha fontes informam-me de que está para nascer um grupo de guerrilha urbana denominado FLOPES - Frente de Libertação Olissiponense dos Perseguidos pelo Estacionamento Selvagem. Saudemos a sua chegada.

Luís Nazaré

A farsa do capitalismo português

Na banca, nos serviços, no comércio, na indústria, o capitalismo português torna-se cada vez mais subsidiário e satélite do capitalismo espanhol. As razões são várias e conhecidas. Desde logo, se o capital já não tinha pátria no tempo de Marx, que havemos de dizer hoje, nestes tempos de globalização acelerada e implacável? Depois, porque se compararmos as dimensões relativas dos dois mercados ibéricos, a fragilidade portuguesa mostra-se presa fácil da atracção exercida pelos nossos poderosos vizinhos. Finalmente - mas este finalmente é porventura a parte decisiva da questão - porque, salvo algumas excepções, os capitalistas portugueses que mais passam o tempo a ostentar os seus serôdios brios nacionalistas e a reivindicar agressivamente os apoios do Estado são os primeiros a fazer-se desejar e a se entregarem voluptuosamente em viris braços castelhanos.

O último caso que ilustrou esta rendição foi o da Somague. Ora, dois ou três dias antes de ter sido anunciada a anexação da Somague por um grupo espanhol, o presidente da empresa portuguesa, Diogo Vaz Guedes, dava uma longa entrevista ao Diário Económico que, além de ocupar duas extensas páginas do jornal, conquistara as honras de manchete. Li, na altura, a entrevista e confesso que fiquei intrigado com o destaque concedido às declarações do jovem empresário.

Ele criticava a política de privatizações dos sucessivos governos, apresentava-se como candidato privilegiado à futura privatização das Águas de Portugal e afirmava que a Somague pretendia liderar o sector do Ambiente. Nada de particularmente excitante e que merecesse relevo especial (sobretudo uma manchete e uma entrevista de duas páginas). Mas em ponto nenhum da entrevista - em ponto nenhum, sublinho - havia a menor referência àquilo que iria ser notícia dentro de quarenta e oito horas. Um autêntico milagre de ocultação jornalística.

Ingénuo incorrigível, percebi tardiamente que o silêncio de Vaz Guedes sobre a anexação da Somague pela espanhola Sacyr era, de facto, o único ponto significativo da entrevista (e do destaque que lhe fora dado). O mesmo Vaz Guedes que se apresentava na entrevista como candidato ao controlo de sectores estratégicos em Portugal, era apenas um figurante numa peça espanhola. Embora concedendo que o capital não tem pátria, a farsa não será um pouco excessiva? Ou será que o capitalismo português converteu definitivamente a sua tragédia em farsa?

Vicente Jorge Silva

O pior dos inimigos

Bloguistas que vêm a este blog - já leram o livro da procuradora Maria José Morgado e do jornalista José Vegar «O inimigo sem rosto – fraude e corrupção em Portugal», editado pela Dom Quixote?

Então leiam-no sem demora neste Natal e recomendem-no ao sapatinho net de dez amigos, com a encomenda de passarem a mais dez em cadeia... É que os portugueses precisam mesmo de ler este livro, se querem ser cidadãos de parte inteira e não meros súbditos em democracia virtual numa república putrefacta. É que não se compreende nada do que se está a passar neste país se não se realiza a que ponto a traficância, a fraude e a corrupção penetram hoje fundo na malha institucional, partidária, empresarial, judicial, policial, militar, mediática, clubística, etc…

O livro deixa entrever os circuitos, simples e sofisticados, e os processos, dos mais ancestrais ao mais recente grito tecnológico, que servem aos traficantes e criminosos para enredar nas suas teias governantes, políticos, funcionários, autarcas, magistrados, polícias, jornalistas – estes são, sintomaticamente, alvos preferenciais, entre todos os necessários para olear a máquina da corrupção e da subversão.

O livro explica o efeito multiplicador e amplificador do alcance da fraude e corrupção, tanto pelos montantes envolvidos e mercadorias e serviços traficáveis, como pela extensão das redes de corrupção, que o processo de globalização desencadeou no mundo e em Portugal desde os anos 90. Este factor novo muda qualitativa e quantitativamente a fraude, a corrupção, a permissividade e o laxismo que sempre grassaram neste país, historicamente poupado a puritanismos luteranos. E este factor precisa de ser realmente entendido e assimilado pela gente honesta e incorruptivel que resta, entre governantes e outros politicos, juizes, magistrados, advogados, policias, funcionários, jornalistas ou empresários……

Mas não é fácil, nem evidente. Ainda há dias me chocou a insensibilidade a esta nova e aterradora dimensão por parte de uma velha amiga, impoluta, inteligente e experiente magistrada, que me asseverava que a única coisa que tinha mudado era o poder da imprensa: «corrupção, pedofilia, tráfico de influências sempre houve e haverá, agora está é tudo a ser mais denunciado e conhecido…». Esta minha amiga, embora ferrada pelo corporativismo sindical que espartilha tantos juízes e procuradores, até é mulher viajada, aberta e atenta (deu-lhe agora para se tomar de simpatias bloquistas, desforrando-se de sucessivos desapontamentos com o PS…).

Se esta pensa assim, como pensarão muitos outros magistrados e agentes do sistema da Justiça, confinados a redomas profissionais, sociais e políticas mais asfixiantes? Já bem basta que, por deficiência de formação ou deformação, invoquem e apliquem por sistema códigos e leis sem referência à Constituição e ao direito internacional ou europeu que a própria Constituição torna direito interno e, assim, tenham feito proliferar prisões preventivas intoleravelmente prolongadas, escutas telefónicas sem controle e metodologias de investigação e interrogatório ofensivas dos mais elementares direitos humanos; tudo sem que os tribunais funcionem melhor e com mais celeridade; e sem que as vítimas vejam feita Justiça. Congressos da Justiça, como o recentemente realizado, servirão para começar a mudar alguma coisa? Como hão-de juizes, procuradores, policias, advogados, e políticos também, entender que, com as novas formas e dimensões da corrupção, da traficância e da criminalidade organizada, de facto se estão a subverter os fundamentos do Estado de direito, da democracia e do exercício da cidadania? Porque se não entenderem, como é óbvio também não reagem.

Fiz um teste à minha amiga – «achas inocentes e inofensivas as teias de dependências que se criam por essas repartições públicas fora, incluindo as mais estratégicas, por exemplo no Ministério das Finanças e nas Polícias, entre uns personagens, em regra mulheres, que aparecem regularmente a vender jóias de ouro ou prata, roupa, quadros, antiguidades, electro-domésticos, etc… às prestações e que assim mantêm agrilhoados a contas-correntes, de montantes por vezes superiores a vários anos de salários, milhares de funcionários do Estado?» Resposta: «Mas isso é o que há de mais banal e normal, há anos que lá na Procuradoria e em todos os tribunais por onde passei toda a gente compra assim coisas a umas senhoras que aparecem a vender!»…
(Para quem deva e possa investigar, desde logo à PGR - porque não começar pela própria PGR? Quem deve a quem, quanto deve, o que se compra, quem vende, quem está por detrás de quem vende, como se paga?).

Há no livro da procuradora Maria José Morgado e do jornalista José Vegar matéria escaldante que merece ser escalpelizada numa Assembleia da República que se preze, num país que se preze, mesmo com uma maioria de direita apostada em impedir e descredibilizar Comissões de Inquérito. O silêncio da AR diante deste livro é, cada dia que passa, mais ensurdecedor. Como é óbvio, não vou parar de recomendar o livro aos meus camaradas no PS. Em especial aos avessos a acreditar em cabalas…

Não, não fiquem a pensar que o livro fala na Casa Pia, embora tenha umas referências avulsas a redes de tráfico de crianças e de pornografia infantil e a como se valem da internet. De facto, não é preciso ler o livro para saber que há muitas maneiras para apanhar «moscas»: há quem seja comprável por dinheiro, por mulheres (homens também, mas há menos mulheres em posições de poder e mais facilmente sucumbem a dinheiro), e até, como ilustra o caso Casa Pia, há quem tudo faça e a tudo se exponha para, abjectamente, abusar de meninos. E há, ainda, quem nem precise sequer de ser comprado, pois à partida já está no bolso dos corruptores e chantagistas, pelo terror de ser posto fora do armário, de ser recordado em deambulações pelo Parque, de lhe ser arrancada máscara e cabeleira …os traficantes nem precisam de pagar em «cash» ou em espécie para porem «varejeiras» destas ao seu serviço, afadigadas a urdir estratagemas de encobrimento e diversão.

O livro avivou-me à memória uma mão-cheia de casos que vi aflorados na imprensa nos últimos meses. Depois do impacto das noticias iniciais, houve seguimento político ou judicial? A lista não é, de modo nenhum, exaustiva e reporta-se apenas a casos que, se resolvidos pelo regular funcionamento do Estado, isto é das instâncias fiscais, policiais ou judiciais, podiam ajudar a Ministra das Finanças a arrecadar mais receitas sem ter que saldar património público ou vender ao desbarato à banca estrangeira créditos que o Estado já devia ter cobrado e ainda vai ter de cobrar:

- 57 % das empresas não pagavam impostos, queixava-se a Dra. Ferreira Leite há um ano. E agora, já pagam? A percentagem subiu ou desceu? As cartas que o Ministério das Finanças acaba de anunciar como estando a ser mandadas aos devedores ao fisco não são a prova de que nada se fez, entretanto? E como se obriga a pagar os grandes devedores, já que só pequenos é que se intimidam com bilhetinhos admoestadores da Dra. Ferreira Leite?

- E os gabirus do futebol que não pagam impostos, já pagam? Os jornais dos últimos dias relataram que não, com a história dos proventos de jogos patrocinados pela Santa Casa da Misericórdia que, não se percebe por que bulas, vão primeiro parar aos cofres dos clubes, em vez dos cofres do Estado… Muito esbracejou, em vão, o major dos electro-domésticos que saiu, de carapuça enterrada, em defesa dos gabirus. E o «Publico» de ontem conta mais uma história que vira do avesso qualquer honesto contribuinte e comfirma a bandalheira a que isto chegou, sem que nenhuma instância estatal se incomode, actue ou assuma responsabilidades: prescreveram as dividas ao fisco de que tão gostosamente se gabou o Bibi do Benfica. Bastaram uns oficios morosos das autoridades fiscais, uns policias distraídos, uns advogados especializados em empatar processos de execução fiscal e uns juízes diligentes a declararem tribunais incompetentes... E assim se evaporaram diafanamente dívidas substanciais aos cofres do Estado, como por magia se evaporou na PJ o substancial cadastro do personagem (alguma autoridade política, judicial ou policial se deu ao trabalho de reagir a uma reportagem do «Independente», há uns meses atrás, sobre tal desaparecimento?...)

- Onde estamos com a investigação anunciada sobre o caso do ex-ministro que tinha em contas na Suiça as poupanças de um esforçado sobrinho taxista? Não era certamente com o modesto vencimento de um luso autarca que se amealhavam tais poupanças…. Ou é da minha vista, ou o ex-autarca/ ex-ministro está tão confiante no «sistema» que nem sequer se deu ao trabalho de desaparecer do passeio público e até escreve nos jornais a atacar o seu desastrado sucessor por que não alinha num negócio aquático já devidamente isaltinado?

- E todas aquelas investigações cometidas à Inspecção Geral de Finanças e a DCICCES da PJ, sobre as redes que funcionavam nas Repartições de Finanças a toque de subornos geridos pelo ex-funcionário Rui Canas, que confirmou em entrevista ao «Correio da Manhã» ter desde há muito virado «consultor» dedicado ao negócio de «limpar impostos»? Estão indiciados ou acusados os clientes de tais serviços de limpeza ? Quem serão eles?

- E como vai a investigação aos assaltos a Repartições de Finanças em que foram roubados suportes informáticos com as listas dos maiores devedores ao fisco? E as reconstituições por «back up» são para se fazerem antes de prescreverem os respectivos processos ? Ou é para irem juntar-se aos das dívidas do Bibi a que o erário público vai dizer «bye-bye»?

A sucessão de perguntas acabrunhou-me e deixou-me às voltas com uma dúvida: pelo estado a que isto chegou, ele ainda haverá Estado?

Ana Gomes

terça-feira, 23 de dezembro de 2003

O povo

O José Mário Silva, que trabalhou comigo num programa chamado Portugalmente, inquieta-se hoje no seu blogue com o aproveitamento que as televisões fazem de todas as situações que possam potencialmente tornar-se bons espectáculos televisivos. Dá o exemplo de uma reportagem que acompanhou a libertação de três presas, o momento em que faziam as malas, se despediam das amigas e telefonavam à família. Diz ele a certa altura: «Serei só eu a ver nisto um espectáculo grotesco e perverso? Uma contaminação do jornalismo pela lógica dos reality shows? Um abuso voyeurista feito à custa de quem, aturdido pelo júbilo da liberdade reencontrada, não tem meios para se defender?»
Questão prévia: há quase dois anos que não faço televisão. Numa parte por escolha própria, noutra por escolha dos programadores. Percebo que, num certo sentido, tenha de pagar uma qualquer factura. Não há qualquer drama nisso. Mas irrita-me imenso este tipo de críticas moralistas e óbvias. A diabolização permanente dos ambiciosos agentes da informação e da sociedade de consumo é estruturante em muitos dos textos sobre o fenómeno. Ainda mais irritante é a forma como intelectualmente se trata o Povo. Não se sabem defender e por isso são abusados. Será que só eu é que vejo aqui um abuso de presunção?
O José Mário que é um excelente poeta e um homem convictamente de esquerda deveria perceber que é perigoso menorizar os outros. Sobretudo, quando na menorização dos outros está a prova da nossa diferença.
Luís Osório

Questão de fim de estação

O tema mais discutido nos corredores da Polícia Judiciária é a valorização dos casos de pedofilia. Isto é: a valorização dos agentes que têm investigado os casos de abuso sexual de menores. De um momento para o outro, a sua acção foi valorizada a um ponto nunca imaginado. Antes do caso Casa Pia eram vistos pelos veteranos como "polícias menores"; além do abuso de menores tratavam do abuso de liberdade de imprensa. Agora, com toda a justiça, estão na primeira linha da barricada mediática.
Os que tratam da criminalidade pura e dura - tráfico de droga e combate ao banditismo - continuam a olhá-los de soslaio, mas provavelmente isso já não os perturba. Recuperaram a dignidade. E apetece sempre estar ao lado dos que recuperam a dignidade... A questão é saber se não lhes será difícil ceder à tentação da visibilidade mediática. E saber, no fundo, se a conquista e manutenção dessa dignidade profissional não poderá acarretar alguns riscos e precipitações. Esperemos que não. Estou em crer que não.
Luís Osório

Outros fóruns

Na minha coluna das terças feiras no 'Público' abordo hoje a questão da participação política dos imigrantes, nomeadamente nas eleições locais. Trata-se de desenvolver um post meu aqui no Causa Nossa de há poucos dias sobre o mesmo tema. Bem gostaria que esta ideia se tornasse uma causa comum, pelo menos nos Estados-membros da UE. Será utópico esperar que os direitos políticos dos imigrantes ainda hão-de figurar na futura, e por ora adiada, constituição europeia?
Entretanto, na minha coluna "A mão visível" no Diário Económico - que compartilho com Maria Manuel Leitão Marques - da semana passada analisei a "Entidade Reguladora da Saúde", cujo diploma foi há pouco tempo publicado no Diário da República. Embora apontando algumas debilidades, considero bem-vinda essa nova instituição, tendo em conta a reforma que está em curso no serviço público de saúde, no sentido da empresarialização dos hospitais públicos, concessão de serviços e estabelecimentos a entidades privadas e criação de mecanismos de mercado no sector. Pode não se estar de acordo com estas mudanças. Mas, feitas elas, o pior seria um "mercado de saúde", ainda por cima deficientíssimo, sem regulação.
Foi isso que tentei explicar, sem êxito (pelo contrário), numa exposição que fizera anteriormente, como convidado, nas jornadas parlamentares do PS, que recentemente decorreram am Coimbra, dedicadas ao tema da saúde. Não creio que tenha atenuado as reacções negativas com este artigo. Mas valia a pena tentar.

segunda-feira, 22 de dezembro de 2003

Blogues nocturnos (2)

O cimento da ortodoxia
Uma bagunça - , eis como pode ser classificada a desorientação momentânea do PSD em matéria de despenalização do aborto. No seguimento da corajosa tomada de posição do bispo do Porto contra a penalização do aborto, o porta-voz do PSD (sabe-se agora que em concertação com o Ministro Arnaut) insinuou a disponibilidade do partido para a reabertura do 'dossier'. Foi secundado por idêntica posição de alguns deputados. O parceiro de coligação governamental, intransigente na punição penal do aborto, chama o PSD à ordem. Durão Barroso intervém e decreta a interdição do assunto. A questão da despenalização do aborto terá de passar por novo referendo e não será nesta legislatura. Nem sequer haverá liberdade de voto na bancada governamental na votação das iniciativas da oposição nesta matéria, que serão inexoravelmente chumbadas. Entretanto no tribunal de Aveiro, a condenação espera os arguidos no processo de crime de aborto que o Código Penal pune severamente, fora dos três casos nele previstos. Moral da história: o PP é o cimento da ortodoxia do PSD.

Cidadania inclusiva
No congresso sobre imigração que decorreu em Lisboa o comissário europeu António Vitorino defendeu o reconhecimento de direitos eleitorais aos imigrantes com residência estabilizada. Trata-se de uma proposta de grande alcance. Desde há muito que a defendo. Não é propriamente inédita. A Bélgica, por exemplo, acaba de reconhecer direito de voto nas eleições locais aos imigrantes instalados há mais de cinco anos no País, embora sem reconhecimento do direito de candidatura.
Esta providência só beneficia de novo os imigrantes exteriores à UE, visto que os nacionais dos Estados-membros desta gozam dos direitos de cidadania europeia, entre os quais se contam direitos eleitorais nas eleições locais e nas eleições europeias, quando residentes noutro Estado-membro. Em alguns países reconhecem-se ainda direitos eleitorais aos nacionais de certos outros Estados com ligações afectivas ao Estado de residência, como sucede em Portugal em relação aos nacionais de outros países lusófonos, designadamente o Brasil.
Mas é justamente para os outros imigrantes que o reconhecimento do direito de participação nas eleições locais se justifica inteiramente. Na verdade, com a imigração considerável verificada nos últimos anos para os países europeus, em especial na UE (mas não só, como sucede na Suíça), as sociedades europeias tornaram-se crescentemente plurais. Em alguns países o número de imigrantes atinge mais de 25% da população adulta. Restringir a participação eleitoral em função da nacionalidade, de acordo com o princípio tradicional da ligação entre cidadania e nacionalidade, deixa de fora da participação nos negócios públicos uma parte importante dos membros activos da comunidade. Por outro lado, o reconhecimento de direitos eleitorais pode ser um instrumento valiosíssimo de inclusão e de coesão social.

História mal contada
O Governo montou uma bem orquestrada barragem para desactivar a acusação de favoritismo governamental na história da transformação da entidade gestora da Universidade Lusíada em fundação, por via de um decreto-lei individual. Os cronistas afectos ao poder apressaram-se a ecoar a tese da lisura e transparência de todo o processo. E o próprio PS, depois de ter elevado a voz para exigir uma investigação dos pormenores do caso, enterrou subitamente o assunto, quanto o antigo Ministro da Educação, Guilherme de Oliveira Martins, confirmou que ele já tinha estado na agenda do seu Governo.
Todavia a revista 'Visão' desta semana, que tinha levantado a questão, voltou ao tema, com declarações do Secretário de Estado de então, José Reis, revelando justamente que a pretensão da Universidade Lusíada tinha sido negada por falta de fundamento legal e por se configurar como uma situação de favor.
Seja como for, uma coisa parece certa: se a transformação de cooperativa em fundação era legal, então não precisava de um diploma legislativo 'ad hoc' para ter lugar, tanto mais que se trata de uma operação jurídico-privada. Isto significa que ela não era legalmente possível. Por outro lado, se o Governo quisesse suprir uma lacuna legislativa, deveria ter promovido uma lei geral (que aliás seria da competência da Assembleia da República), válida para todos os interessados, e não uma lei singular 'ad hoc', que beneficia apenas a Universidade Lusíada. Todo o tratamento singular cheira a favoritismo.
Entre os sofismas produzidos pelo Ministro Morais Sarmento em defesa da medida governamental conta-se o argumento de que idêntico procedimento tinham sido adoptado noutros casos precedentes, como por exemplo a Fundação de Serralves, a Fundação Luso-Americana, etc. Ora, é evidente que em nenhum desses casos se tratou da transformação de uma cooperativa em fundação, mas sim da criação originária de fundações. Pode-se morrer por excesso de zelo e défice de conhecimento...

O discurso do ódio
A nossa direita radical, em geral, perdeu o verniz liberal com o entusiasmo da captura de Saddam Hussein, aplaudindo o indigno tratamento dado ao prisioneiro pela exibição de imagens ostensivamente humilhantes e ridicularizando a reclamação de julgamento justo daquele. Com toda a justeza José Pacheco Pereira - honra lhe seja, ele que apoia desde o início a política norte-americana no Iraque - zurze no 'Público' desta semana a incontinência retórica de um dos nossos mais fundamentalistas fãs de Bush a esse propósito. Mas que dizer desta 'pérola' de um dos cronistas do 'Independente' desta semana?
'Ao ver este criminoso enfiado num buraco de ratazana, a minha primeira vontade era empalar a criatura numa praça de Bagdad. Mas então lembro Talleyrand e as sábias palavras do mestre: nunca sigas o teu primeiro impulso porque ele será sempre generoso'.

Canotilho



Associo-me com regozijo à atribuição do prestigiado 'Prémio Pessoa' ao Professor Canotilho, pelo seu estatuto de universitário eminente, pela sua obra de constitucionalista brilhante, pela densidade teórica da sua produção jurídica, pela amplitude das suas preocupações intelectuais, pela vastidão da sua bagagem cultural, pela intervenção activa nas questões da cidadania, pela dimensão cosmopolita da sua irradiação. Sendo seu amigo de há muitos anos, companheiro de tantas experiências comuns, colaborador de várias obras conjuntas, não é sem emoção que vejo reconhecida publicamente nele a responsabilidade do homem, do cidadão, do professor e do jurista na luta por uma sociedade mais livre, mais democrática e mais justa. Parabéns Joaquim! Bem o mereces.

Vital Moreira

domingo, 21 de dezembro de 2003

A governação da Internet: uma decisão adiada

Na semana passada em Genebra, na cimeira sobre a Sociedade de Informação, discutiu-se o modo de combater a fractura digital e a governação da Internet. Blogs livres e à borla? Comunicação fácil? O que é bom para a AOL é sempre bom para a Internet? A Internet como Património Comum da Humanidade? Regulação, deve haver? Muita? Pouca? Sobre o quê? A cargo de quem deve estar a governação? Das Nações Unidas? De uma organização não lucrativa situada na Califórnia chamada ICANN, com quem é certo, por enquanto, não nos temos dado mal? Grande parte das respostas foi adiada para Tunis, em 2005. Eu também não as sei, mas cheira-me que é importante o que está a ser discutido.
Relembro, a propósito, o livro de Lawrence Lessig (The Future of Ideas - The Fate of the Commons in a Connected World. New York: Random House). 'A liberdade que é preciso defender é a liberdade de criação e de inovação que marcou os primeiros tempos da Internet. Foi esta liberdade que dinamizou a maior revolução tecnológica do mundo ocidental desde a Revolução Industrial, e que poderá estar perder-se'. Lessig enuncia as vantagens em manter como bens comuns (commons) algumas das camadas que constituem a Internet, para que esta se conserve como um sistema descentralizado, mais livre do que controlado.

Maria Manuel Leitão Marques

quinta-feira, 18 de dezembro de 2003

O jogo dos impostos

Eu cá por mim, cara Ana G (ver Major Carapuças),sempre me intriguei foi com a nossa infinita resignação (a nossa, a dos trabalhadores por conta de outrem e a dos restantes que pagam os impostos) e enorme complacência perante a impunidade fiscal, tantas vezes publica e desabridamente assumida pelos não pagantes (se nunca viram, experimentem comprar uma casa nova!).

Uma vez, O Prof. Silva Lopes disse numa conferência que não percebia a razão pela qual os sindicatos portugueses (que, por definição, representam trabalhadores por conta de outrem, forçosamente pagantes) nunca tinham feito do combate à fraude fiscal um objectivo importante da sua luta (como é costume dizer-se). Eu também não, ou talvez sim. Temerão que pagando os impostos as empresas lhes deixem de pagar o subsídio de Natal! Ou então, é por uma questão de cautela: a nossa vez de não pagarmos, um dia, há-de chegar.

Mas que assim não vale, não vale. Devíamos recusar-nos a entrar no campo até que as regras do jogo sejam iguais para todos e o árbitro apite quando é preciso. (Linguagem futebolística será moda em 2004. Vou treinando! )

Maria Manuel Leitão Marques

Uma "excelente" notícia?

Nunca imaginei que pudesse ter “estados de alma” em relação à captura de um ditador – e sobretudo de um ditador tão detestável, tão odioso como Saddam Hussein. Mas a verdade é que depois de uma reacção inicial de contentamento e alívio, dei por mim a torcer o nariz e a experimentar uma estranha ambivalência de sentimentos face àquilo que o Presidente Sampaio qualificou de “excelente notícia”.

Excelente é sem dúvida que Saddam tenha sido preso e possa responder pelos seus crimes perante a Justiça. Mas logo aqui se põe a questão de saber de que Justiça se trata, qual a legitimidade de um julgamento encenado pela potência ocupante do Iraque – a mesma potência que se recusa a reconhecer o Tribunal Penal Internacional, a mesma potência que decidiu uma intervenção militar à margem da legalidade internacional e baseada em motivos falaciosos e inventados.

É natural que os Estados Unidos e os seus aliados na cruzada iraquiana queiram tirar o máximo partido político possível da prisão do ditador. Mas a “mise-en-scène” da captura de Saddam e o propósito evidente de humilhá-lo publicamente acabam por ter efeitos perversos.

Aquele homem esgrouviado e com ar semi-louco que vimos repetidamente nos ecrãs de televisão não se teria convertido numa ameaça tão virtual como as famosas armas de destruição maciça? Poderia ser ele o chefe da resistência às tropas ocupantes ou é já apenas um “idiota inútil”, um “bobo” da corte dos invasores e o bode expiatório de uma cruzada militar que teve como resultado mais palpável não neutralizar o terrorismo mas oferecer um palco privilegiado à Al Qaeda?

No fundo, Saddam surge quase como um magro trofeu simbólico de compensação perante o desaire da estratégia de combate ao terrorismo levada a cabo pela Administração Bush. Saddam é a imagem invertida da captura que está por consumar: a de Bin Laden.

Saddam preso já não transmite uma imagem efectiva de triunfo mas sobretudo uma imagem patética: não apenas de Saddam mas daqueles que o capturaram num buraco exíguo e primitivo que nos faz sorrir dos fabulosos subterrâneos de que tanto se falou antes da conquista de Bagdad.

No Afeganistão, no Iraque, na Arábia Saudita, na Turquia, o terrorismo islâmico recompõe-se e ataca com uma vitalidade inusitada. Que pode contra isso a humilhação de Saddam?

Vicente Jorge Silva

quarta-feira, 17 de dezembro de 2003

OS BLOGGERS

Na chamada blogosfera há espaços que ganharam um estatuto de referência. Hoje, neste espaço virtual, quem não gosta de ser citado pelo Pedro Mexia, José Mário Silva, Daniel Oliveira ou Ricardo Araújo Pereira? Cito apenas exemplos de pessoas que têm uma qualidade muito acima da média, pessoas que, eventualmente, podem deixar uma qualquer marca no futuro.
Todos ganharam relevância e espessura dentro de uma pequena comunidade com preocupações intelectuais. Passaram a "existir" e a gostar de muitas das coisas que esse estatuto lhes traz. A gostar de coisas que criticam nos outros fora da blogosfera. São figuras nas apresentações de livros e dão grande importância ao que dizem, porque o que dizem é lido e ampliado neste suporte. É certo que todos estes exemplos, aos quais poderia acrescentar os meus queridos amigos Tiago Rodrigues, Luís Filipe Borges e Nuno Costa Santos , são exemplos de pessoas que fizeram coisas interessantes ou mesmo extraordinárias. Mas o que é certo é que lhes faltava o palco onde sobre si estivessem concentrados alguns holofotes, holofotes que tanto criticam nos outros. Sob a capa da blogosfera confessam-se sobre as suas próprias intimidades, coisa que não tenho contra. O que acho estranho é rejeição desse mesmo registo fora da blogosfera. (talvez daqui retire o Daniel, homem que nunca fala da sua vida privada, coisa que lhe ficou sem dúvida do marxismo-leninismo em que acreditou com tanta força como hoje acredita numa espécie de Rosa do Luxemburgo revisitada).
Fico muito contente por eles. Nem que fosse por isso valeu a pena ter nascido este submundo virtual. Mas vivam esse estatuto sem sentimentos de culpa, sem estarem sempre a pôr e a tirar máscaras. Posso falar no meu Blog da minha primeira paixão e do mal que a Primavera me faz ao aparelho reprodutivo, mas depois na minha vida real apenas falo do À Procura do Tempo Perdido e da literatura e do cinema de autor. Os dois mundos não são inconciliáveis.
Do vosso leitor,
Luís Osório

SADDAM

Contra o artigo 13 da terceira Convenção dos Direitos Humanos, assinado em 1949, os infantes fardados de Bush mostraram Saddam, um ditador e genocida, na expressão mais humilhante de besta indefesa, em provas periciais, de luva branca, cuja violência e indignidade nos provocam repulsa e pânico.
Mesmo um ditador é humano. E como tal deve ser tratado. Ou será que precisa da defesa da Sociedade Protectora dos Animais, ou Bagdad fica assim tão longe de Barrancos?
Vivemos tempos terríveis com o regresso da Inquisição, noutros moldes que os choques eléctricos não são tratos de polé ( poulet, frango, com ou sem churrasco), antes alguns minutos de televisão, a grande câmara de torturas dos nossos dias.
A barbárie tecnológica tomou conta de nós. O Apocalipse acaba por se transformar num texto suave face ao quotidiano do princípio do século XXI.
Temos acaso o mérito de nos destruir?
Já só pensamos no estados das coisas, incapazes de discutir o estado das causas.
A ausência contribui para o absoluto. O absoluto assenta no vazio. E no vazio germina o arbitrário.

Rogério Rodrigues

FUMAR


Li há dias, sem surpresa - que a idade já não dá para tanto -, que, em Nova Iorque D.C., um cidadão (não especificando a nacionalidade nem a etnia), pode ser multado em qualquer ninharia como dois mil dólares se for apanhado na posse de um cinzeiro. Contudo, é-me permitido andar com uma arma, sem ser sujeito a qualquer coima ou reprimenda bruta de um qualquer agente de autoridade ou cidadão pacifista, cultor das flores de S. Francisco.
Não estou a contar nenhuma anedota. Limito-me a escrever sobre uma notícia, uma breve, uma tripinha, que surgiu num jornal diário.
Sou um fumador inveterado. Porventura tardio, mas que ainda apanhei os outros. Sei que o fumo me consome (não estou a falar dos escapes dos automóveis, das chaminés das cimenteiras, da política portuguesa), sei que me faz mal, mas estou a bem com a sociedade -o imposto que pago diariamente ao Estado pelo facto de fumar, dá-me a tranquilidade de saber que pago o meu futuro cancro, sobrando ainda algum dinheiro para o cancro de alguém que nunca fumou.

Rogério Rodrigues

terça-feira, 16 de dezembro de 2003

A CONFIANÇA ENVIUVOU

Na sexta-feira vi o Marítimo-FCP na televisão. Não todo, mas quase todo. Sou benfiquista - também tenho essa virtude, além de outras que não vêm agora ao caso. O que me espantou no modo de jogar do Marítimo, o que faz toda a diferença para o futebol que a equipa do Benfica pratica, foi a confiança que transpira no seu modo de jogar. Mesmo sabendo que alguns dos jogadores do Benfica não serão grande espingarda, são inegáveis as suas 'vantagens comparativas' quando confrontados um a um com os do Marítimo. Idem para a equipa no seu todo. E no entanto -
É a confiança, estúpido! - apetece berrar e é verdade. Movimentar-se sem bola, confiando que ela me vai chegar; ousar sair da minha posição habitual, sabendo que outro a ocupará; pressionar o jogador adversário, seguro de que os meus cobrem os restantes; iniciar uma jogada, certo de que a minha equipa a acompanha e ajuda a construir. E por aí fora, sendo que não somos bons, mas damos o melhor e gostamos de jogar à bola. No Benfica é ao contrário: cada qual é 'muita bom', mas não pode contar com mais ninguém; tem rasgos geniais, mas mais ninguém acredita nisso, preferem ficar a ver se sim ou se não.
A culpa deste estado de coisas que paira para os lados da Luz, não sei de quem é. Mais vale deixá-la morrer solteira, como é hábito entre nós. De resto, já é assim desde o Génesis. Na parte final do mito da criação, Deus pergunta a Adão se é ele o culpado. Qual o quê! Adão passa a bola a Eva, esta à serpente e só ficamos sem saber a quem culparia a serpente, porque Deus, cansado do jogo, já não lhe pergunta nada.
Aceitemos então que a culpa morra solteira. O pior é a confiança ter ficado viúva. Ao contrário daquela com que ninguém conviveu, já o país andou casado com esta. Avivando a memória (e sem recuar aos tempos que agora os neo-conservadores deram em considerar não-democráticos): ainda se recordam dos anos 86-90; ou do período 96-99?
Os economistas dizem que a confiança é um factor 'imaterial' decisivo (há Prémios Nobel atribuídos a quem investigou nesta área). A gente dos media diz que é difícil de conseguir e fácil de se perder. Os políticos pedem-na todos os dias. Os psiquiatras afirmam que sem ela só há vidas sofridas e torturadas. Consumidores, clientes e fornecedores deixam de o ser se a perdem. Todos sentimos (sabemos) que sem confiança não há futuro minimamente apetecível.
Que raio! Talvez valha a pena parar um momento para pensar como e porquê nos divorciámos dela. Mais importante ainda: como a poderemos recuperar? Alguém tem uma pista?

Jorge Wemans

Blogues nocturnos

1. Julgar Saddam Hussein
Excluída a hipótese de reservar a Saddam Hussein o mesmo destino dado aos alegados membros taliban enterrados em Guatanamo em regime de morte civil, a alternativa só pode ser o seu julgamento pelos crimes cometidos pela ditadura (incluindo os que contaram a seu tempo com o apoio ou a conivência norte-americana) por um tribunal credível. Ora nesse caso não se encontra o tribunal penal especial congeminado recentemente pelos norte-americanos em Bagdad, que não oferece as mínimas garantias de imparcialidade e de independência. Não sendo possível considerar o TPI, desde logo porque a sua jurisdição não cobre temporalmente a ditadura iraquiana (para além do seu não reconhecimento pelos Estados Unidos), exige-se um tribunal internacionalmente acreditado, que somente as Nações Unidas podem legitimar.

2. Uma voz singular
A tomada de posição do bispo do Porto contra a criminalização e punição penal do aborto revela uma singular independência e coragem pessoal, tendo em conta o fundamentalismo tradicional da hierarquia da Igreja Católica na utilização do instrumentário repressivo do Estado para castigar a interrupção voluntária da gravidez em qualquer circunstância. Prescindir da punição penal do aborto não significa a absolvição deste sob o ponto de vista moral ou religioso, ou mesmo social. A punição penal exige um mínimo de consenso social sobre a utilização dessa forma extrema de proteger valores comunitários, não podendo ser instrumentalizada para a defesa de particulares visões religiosas.

Vital Moreira

segunda-feira, 15 de dezembro de 2003

Majores Carapuças

Um jornal desportivo, há dias, mimoseava-me com qualificativos menores de um senhor que se vale dos galões de major e foi acumulando cargos de autarca, dirigente partidário e dirigente futebolistico. Se bem me lembro, ganhou notoriedade ao esgrimir electro-domésticos como arma de propaganda eleitoral, valendo-se de experiência empresarial ganha com negociatas com tubérculos na tropa. Sai a terreiro por ter ouvido dizer (confessa não ter visto) que na televisão eu aludira a «gabirus do futebol que não pagam impostos». Manda-me instruir sobre futebol junto de alguns dirigentes socialistas especializados na matéria…

Em vão gastará o seu latim, por mais socialista que se apresente, quem pretenda interessar-me por futebol… É que sou visceralmente avessa ao sortilégio do chuto na bola e do folclore clubístico. Em futebóis só alinho, eventualmente, para finais de campeonatos em que jogue a selecção nacional, e apenas por contágio de incontrolado patrioteirismo.

Nada tenho, porém, contra o futebol como desporto ou espectáculo. Sou mesmo muito sensível aos encantos viris de um Luis Figo, de um Vítor Baia ou de um Nuno Gomes (em Jacarta perguntavam-me frequentemente se era parente dele e eu dizia logo que sim…). Na verdade, graças à qualidade de alguns jogadores e equipas, reconheço ao futebol grande potencial diplomático - bem o aproveitei para promover as cores nacionais na Indonésia, fartando-me de distribuir camisolas, bonés e fotografias dos nossos futebolistas. Potencial que cria também especiais responsabilidades - e a imagem do país sai de rastos quando jovens futebolistas demonstram boçalidade ao destruir balneários alheios e dirigentes desportivos procuram, vergonhosamente, caucioná-los...

Confesso, pois, nada saber de futebol e até um maior pecado: nada querer saber! O que não deixa de ser irónico, pois a minha passagem para a política tem muito a ver com o futebol. Durante a campanha eleitoral em Março de 2002, que na parte final pude acompanhar em Portugal, fiquei abismada com a alienação colectiva causada pela promiscuidade entre negócios, política, media e futebol. Não se discutia política em plena campanha eleitoral, discutia-se o apoio declarado pelo Sr. Vilarinho, do Benfica, ao PSD e o não declarado pelo Sr. Pinto da Costa ao PS. Futebol, ópio do macho luso! (e de muitas mulheres também, desferem-me amigos ofendidos pelo meu desinteresse pelo desporto que os faz suar, colados às bancadas ou aos sofás diante dos televisores…).

E bastaram pouco meses, desde que voltei a Lisboa, para realizar que não se percebe nada deste país, nos tempos que correm, se não se tentar perceber alguma coisa dos negócios do futebol. O que quer dizer, da relação promíscua de empresas do futebol com a política, a construção civil, tráficos diversos, os media, a noite, etc... Uma promiscuidade que serve e potencia a criminalidade e que tem, por isso, de ser exposta, denunciada, travada, combatida e punida. («Ingénua e triturável», não falta quem já me arrume as botas…)

Quando falei há dias na SIC-Noticias, a propósito do fiasco do PEC e das políticas do Dr. Barroso e da Dra. Ferreira Leite, nos «gabirus do futebol que se gabam de não pagar impostos», não era evidentemente de futebol que falava. Era de quem não paga impostos, daqueles que se vangloriam de não os pagar e sobretudo do Governo que nada faz para os obrigar a pagar e para os penalizar pela evasão e fraude ao fisco. Do Governo e das autoridades administrativas, policiais e judiciais que continuam indiferentes, inoperantes ou coniventes com os «off-shores dos pequeninos» descritos por Maria José Morgado e José Vegar no livro «O inimigo sem rosto - fraude e corrupção em Portugal» a propósito dos circuitos entre clubes, empresas e autarquias em que se reciclam proventos de negócios «informais» e esquemas criminais que defraudam o erário público e, assim, escandalosamente roubam Portugal inteiro.

No futebol há, decerto, gente honesta e respeitável; como há em todos os sectores da sociedade. Gente honesta paga impostos. No futebol, como noutros sectores da sociedade, há também gabirus (cf. Diccionário Enciclopédico Alfa: «gabiru - indivíduo velhaco, mariola, patife, espertalhão»). Haverá no futebol gabirus que pagam impostos. Mas há também, de certeza, gabirus do futebol que não pagam impostos e que até se gabam publicamente de não os pagar. Pois ele até há majores menores que enfiam a carapuça!...

Ana Gomes
12.15.2003

domingo, 14 de dezembro de 2003

A insustentável leveza das Necessidades

Estou contente. A aparição da chefe da diplomacia portuguesa, a Drª Teresa Gouveia, deixou-me tranquilo. Estou certo que este sentimento é partilhado por muitos portugueses, cibernautas ou não. Julgávamos a senhora desaparecida ou, na melhor das hipóteses, escondida na bagagem do Dr. Durão Barroso. Mas não. De súbito, a senhora apareceu para dizer quão feliz se encontrava pela captura de Sadam Hussein. Ainda bem.
A leveza das Necessidades não podia ter encontrado melhor intérprete do que a Dr. Teresa Gouveia. Alguém deu pela MNE nos debates sobre a Europa, a reforma institucional, a evolução política nos Palop, a intervenção portuguesa no Iraque? Alguém conhece à MNE o pensamento (próprio) sobre estas questões?
Não quero ser mau em dia de gáudio pela prisão de Sadam, mas incomoda-me a frivolidade na política. Ainda me lembro do modo superficial e improfícuo, embora elegante, como a Drª Teresa Gouveia exerceu no passado pastas ligadas à Cultura e ao Ambiente. Espero que esta queda pela leveza se fique pelos Negócios Estrangeiros.

Luís Nazaré

Escritores de Goa

Em Goa, no centro da cidade de Margão, debaixo de uma arcada, trabalham os escritores. Não de romances, ensaios ou blogs. Escritores a feitio, à medida do cliente. Escrevem o que for preciso: cartas de amor, requerimentos, convites. Uma pequena mesa, uma velha máquina de escrever, uma pilha de papéis (os modelos, as amostras) e alguma sabedoria fazem a profissão. Aquele com quem falei fez questão de me mostrar uma carta do PM (António Guterres, então) em resposta a um requerimento que Macário Thomaz Salvador Gomes Mendes lhe havia antes enviado (presumo que em português, não sei a pedir o quê). A questão iria ser estudada.
Mais a sul, em Palolem, há uma praia deslumbrante. Entre palmeiras, proliferam as palhotas (pequenas casas de palha, exactamente). Numa delas, uma placa anuncia: Internet, e-mail, telefone, printers entre outras modernices. Fui espreitar. A procura são turistas, ávidos de conexão. Mas o dono do bar ao lado faz lá cópias de CDs.
O mundo info-dividido, que esta semana se discutiu em Genéve, aqui está no seu esplendor, surpreendente e tão próximo um do outro.

PS Erro meu, má fortuna... não consigo incluir a prova fotográfica. Fica para a próxima.

Maria Manuel Leitão Marques

quinta-feira, 11 de dezembro de 2003

'Revisionite' constitucional

Os líderes da coligação governamental ficaram manifestamente irritados com a tomada de posição do Presidente da República contra a 'revisionite' constitucional, que tinha por alvo inequívoco o processo de revisão constitucional recentemente desencadeado por iniciativa do PS, mas em que o projecto de revisão da PSD-PP é de longe o mais abrangente. Despropositadamente Durão Barroso chegou a pôr em causa a legitimidade democrática originária da CRP (que o PSD porém votou) e vários outros dirigentes invocaram a competência exclusiva da AR para daí concluírem pela incompetência do PR para se pronunciar sobre o assunto.
Trata-se de misturar alhos com bugalhos. A competência exclusiva da AR significa que somente os deputados podem apresentar, discutir e votar propostas de revisão constitucional (o que, aliás, põe em causa o facto de o projecto PSD/PP, esse sim, ter sido negociado entre dois dirigentes que não são deputados...). Mas não quer dizer que os demais órgãos do poder político, seja o PR seja o Governo, não possam emitir opiniões e tomar posições sobre o tema. No nosso sistema constitucional o poder presidencial de 'externalização' de opiniões públicas não exclui as matérias constitucionais. Pelo contrário, são temas de que ele não deve alhear-se, tratando-se como se trata das questões básicas do regime de que o PR é o principal regulador e moderador.
Por isso as críticas da maioria governamental são descabidas. Para mais, o PR tem toda a razão. A 'revisionite constitucional' é uma das principais pechas da nossa democracia.
Vital M

A 'palestinização' do Iraque

Noticia a imprensa que as tropas de ocupação norte-americanas no Iraque começaram a utilizar as técnicas israelitas na Palestina, incluindo o bloqueio de povoações, a destruição de casas e a prisão de familiares de alegados resistentes, para assim forçar estes a entregarem-se. Para além de natureza claramente terrorista destas medidas, a 'palestinização' do Iraque não augura nada de bom, só podendo ter como efeito a generalização da resistência. Quem é que continua a fazer rimar ocupação com libertação?
Vital M

Fumo branco para a Constituição europeia?

Joga-se provavelmente neste fim-de-semana o futuro da Constituição europeia. Infelizmente pode estar para se confirmar a advertência do Presidente da Convenção que elaborou o projecto de Constituição, Giscard d’Estaing, de que a tentativa de modificar qualquer das suas soluções fundamentais poderia pôr em causa toda a sua arquitectura ou até a possibilidade de qualquer solução global.
O principal obstáculo provém da Espanha e da Polónia, que não querem perder o privilégios que obtiveram num noite louca da formulação final do Tratado de Nice, que lhes proporcionou quase o mesmo peso de voto que a Alemanha e a França nas decisões da UE, apesar da substancial diferença de peso demográfico. Por isso se obstinam (aparentemente apoiadas pelo Reino Unido, por razões puramente oportunistas) em opor-se ao sistema de dupla maioria previsto no projecto de Constituição (mais de metade dos países e mais de 3/5 da população), que constitui uma das mais virtuosas das suas inovações. O mínimo que se pode dizer é que a posição espanhola e polaca não devem merecer senão uma firme recusa.
É evidente que o projecto de Constituição Europeia não é uma obra indiscutível nem inaperfeiçoável. Mas nenhuma constituição pode satisfazer todas as partes em todas as suas disposições. Uma constituição é sempre obra de um compromisso. Se se pusesse como condição para aprovar uma constituição a concordância com todas as suas disposições, é muito provável que a maior parte das constituições existentes nunca teriam sido aprovadas.
Entre nós tem vindo a ser lentamente superado o défice de discussão das grandes questões da Constituição europeia. O recente debate parlamentar desencadeado pela proposta de referendo imediato apresentada pelo Bloco de Esquerda permitiu uma maior clarificação das várias posições partidárias a respeito dela (e só por isso foi importante a iniciativa 'bloquista', por menos que se concorde com um referendo 'preventivo' sobre a mesma). Está assim definida a oposição dos partidos à esquerda do PS, na tradição de resistência dessas forças políticas à integração europeia. Ficou claro igualmente o apoio do PS, incluindo quanto aos aspectos mais controvertidos sob um ponto de vista mais 'nacionalista', também dentro da tradicional linha europeísta desse partido. Já o Governo dá mostras de algum retraimento e 'atentismo', insistindo, por um lado, em alguns pontos da agenda dos pequenos e médios países (composição da Comissão, presidência do Conselho, etc.), mas sempre sem pôr em causa a aprovação do que vier a resultar da CIG. Manifestamente o Governo Português optou pela discrição, para não desagradar a gregos nem a troianos...
A União Europeia precisa de uma constituição, sob pena de fazer perigar o seu funcionamento e no seu desenvolvimento. Por isso cabe a todos os Estados-membros, incluindo Portugal, contribuir activamente para o sucesso da CIG em curso. A actual fase de suspensão e indefinição europeia não pode prolongar-se.
Vital M

Ainda sobre a lusofonia

Algumas coisas devem ser ditas (blogando):
1. O colonialismo era horrível (algo que o "povo" quando interrogado calmamente diz, xibalo aqui por exemplo, a pancada, o desprezo, etc e tal. Isso, caro Luís Nazaré, não se esquece, ainda para mais quando se tem a idade da Cesária Évora) e é claro que deixa marcas;
2. o português em África, hoje, oscila entre o paternalista (sumamente irritante) e o arrogante (racista, quantas vezes de modo inconsciente), o que exponencia as marcas. E falo do emigrante (eu próprio) e a do enviado estatal/societal. Nem todos o somos, mas uma boa mão cheia deles (cá e daí vindos) fazem a imagem;
3. a lusofonia da III República é uma ideologia falha e procura limpar o passado, como se não houvesse memória, história, assim desvalorizando os povos alheios, exactamente porque sem história, sem memória (vejam o Margarido, o Lourenço e, já agora, o Cahen, e digo-o sem laivos de erudição, talvez conheçam V. outros, que desmontam o discurso de modo implacável), o que piora os ressentimentos [que se passou com a esquerda no poder que nada mais fez do que reproduzir isto? que falha histórica! sublinho, a esquerda no poder, mas que impregnou tantos outros, sem capacidade de se afastarem do mainstream. A analisar segundo uma sociologia da intelectualidade? Tantos fundos, tantos encontros, tantos congressos para a lusofonia? E ela tão mal acolhida, porque será, só pela má-disposição alheia? Ou não será uma enorme falha intelectual? Caramba, e é tão óbvio, basta olhar e ver]
4. E, mais do que tudo, Portugal falhou no regresso a África, um regresso diferente, de negócios de mercado aberto (é falso, os mercados estão controlados, nós sabemos, mas entendam, digo que já não é mercado fechado colonial, é isso que eu quero dizer: em Coimbra Carlos Fortuna é bom exemplo de alguém que escreveu sobre isso), e falhou na cooperação para o desenvolvimento. Sempre confiantes nessa falsa e maldita vantagem comparativa, aquela que julgam ser a da língua comum: mais que não seja (porque ela ainda implica mais ruídos) porque não chega, não é só por si competente.
5. E ainda, e termino, mas tanto haverá para dizer. A maioria da população já não viveu o colonialismo, só conhece os portugueses do que ouvem dizer, pelos seus mais velhos, e por aquilo que nós mostramos. E, Luís Nazaré, como há-de alguém de simpatizar connosco se só conhece de nós o que nós mostramos em África? (tem TVCabo? Dedique antes do próximo post um dia à RTP-África. Garanto-lhe que ficará ferozmente anti-tuga)
Fico, atabalhoado, por aqui. Mas se houve vontade de "regressar a África" nos anos 90 falhou. E hoje dizem-me que em Angola cooperação e empresas fazem exactamente os mesmos erros que em Moçambique se fizeram na década passada. E, pior, se houve (há) vontade para contribuir para o desenvolvimento alheio, aí é mesmo no comments...

Mas antes, MMLM, concordo com essa negação da ideia de que o nosso colonialismo é pior do que os outros. Não tem qualquer razão de ser esse pensamento. Nem empírica nem conceptual. E, talvez, as relações actuais também não sejam piores do que a que os outros ex-colonos têm nas suas colónias. Mas podiam ser muito melhores, a bem comum. Se houvesse mais inteligência, mais olhar e menos vaidade.

José Pimentel Teixeira

quarta-feira, 10 de dezembro de 2003

Nós e os Palops (comentando o carinho do L Nazaré)

Nos Palops há as elites e os outros. E nas elites há quem pense como escreves e quem não pense. Percebe-se, aliás, que seja do seu ex-colonizador que alguns precisam de se demarcar, tanto mais artificialmente quanto mais ténue seja a diferença e grande a proximidade. Os colonizadores dos outros estão distantes por princípio.
Esta explicação para a tua falta de 'carinho' (que vem do meu em demasia) não significa, no entanto, tolerância com insultos ou compreensão para o excesso de arrogância, baseada em supostos complexos coloniais que de todo não partilho.
De resto, olhando para África, onde estará essa diferença tão marcante, deixada pelo ex-colonizador, entre a R. D. do Congo, o Zimbabué, Cabo-Verde ou Moçambique, que favorece os dois primeiros e prejudica os dois últimos?

(Que tal um comentário do José Flávio Pimentel, algures no Maputo e talvez on line?)

Maria Manuel Leitão Marques

terça-feira, 9 de dezembro de 2003

Pensamento zero

A globalização neo-liberal impôs o pensamento único. Agora, a obsessão do défice zero converteu-se em pensamento zero. Estávamos proibidos de discutir o pensamento único precisamente porque era único e não admitia alternativas. Agora enfrentamos uma proibição ainda mais implacável e radical porque não é possível discutir racionalmente uma obsessão que se traduz na própria ausência de pensamento.

O pensamento zero é a variante portuguesa do pensamento único – e o horizonte palpável da acção governativa da direita. Aqueles que desistiram de pensar ou que nunca tiveram sequer a veleidade de fazê-lo encontraram um ídolo à sua medida: Manuela Ferreira Leite. Não espanta, por isso, que "opinion makers" como José António Saraiva ou, de forma um pouco mais retraída, António Barreto, se declarem rendidos ao obsessivo neo-salazarismo contabilístico da actual ministra das Finanças.

Não vale a pena discutir se a obsessão do défice zero é, pelo menos, genuína, ou um mero dogma religioso sustentado em aldrabices grosseiras de "contabilidade criativa".

Não vale a pena discutir porque é que o Governo português se mostra tão compreensivo com a decisão franco-alemã de romper o pacto de estabilidade, ao mesmo tempo que manifesta um prazer sado-masoquista em ver o país entregue às agruras da recessão e do desemprego.

Não vale a pena discutir se o indispensável saneamento das finanças públicas se deve fazer através de uma política de reformas e de equidade na distribuição dos sacrifícios ou de uma obsessão que poupa os mais privilegiados e mais faltosos e castiga os que menos possibilidades têm de defender-se.

Não vale a pena discutir por que artes Alberto João Jardim escapa uma vez mais aos rigores draconianos do orçamento, apesar de ser o símbolo maior da irresponsabilidade despesista nacional.

Não vale a pena discutir seja o que for, porque o pensamento zero a que chegámos é mesmo isso: zero. Noves fora, nada. O deserto da política num país onde o acto de pensar é suspeito e sujeito a tributação suplementar. A não ser, é claro, que se pense como o director do "Expresso".

Vicente Jorge Silva

Ilusão?

Caro Manuel Pedroso de Lima
O sentido do meu texto sobre o futuro da RTP e, sobretudo, a forma como vejo o meu contributo nos trabalhos da comissão gerou certamente alguns equívocos. Obviamente, que o meu empenho é proporcional ao desagrado perante as opções tomadas ou que se avizinham no horizonte. Mas, em todo o processo, nunca me senti usado. Se nos conhecessemos saberia que, apesar de continuar a esforçar-me por criar ilusões, assumindo e esperando as inevitáveis desilusões, nunca tive grandes ou pequenas esperanças.
Agora, de forma nenhuma o meu texto significa uma desistência. É, antes de tudo, um contributo para a discussão. Uma discussão que, paradoxalmente, morreu no espaço mediático. Quando falei da privatização fi-lo de uma forma não absoluta. Mas, convenhamos, nesta altura todas as hipóteses me parecem passíveis de ser discutidas. Se o Estado não consegue definir e concretizar um serviço público de televisão porque não assumir a ruptura e procurar soluções dentro de um quadro alternativo?
Luís Osório

domingo, 7 de dezembro de 2003

Carinho lusófono

O discurso anti-latino, manhosamente alimentado pelos cientistas históricos norte-americanos, é música celestial para os ouvidos dos habitantes das ex-colónias portuguesas e espanholas. Definitivamente, não somos influência de que as nossas ex-colónias se gabem. Longe disso. Os brasileiros têm horror às suas origens lusitanas e davam tudo para poderem exibir antepassados exclusivamente holandeses, italianos, libaneses ou japoneses. Os argentinos e os chilenos só evocam as influências alemã e transalpina, omitindo Castela. Os nossos queridos Palop não escondem a sua animosidade para connosco, ainda que se mantenham adeptos dos clubes portugueses e se movimentem em Lisboa como em nenhuma outra capital do hemisfério norte. Toda a nomenclatura moçambicana detesta a lusofonia, a angolana só se exprime em petrodólares, a guineense suspira em francês, enquanto a cabo-verdeana vai exprimindo o ressentimento colonial através de declarações rudes de alguns dos seus ícones artísticos (como Cesária Évora e outros). Não tenho dúvidas de que o melhor presente de Natal para Cesária seria um pergaminho de ascendência gaulesa. Devemos ficar tristes? Nem um pouco. Os franceses, que têm uma propensão natural para aturar os indigentes, bem podem amanhar-se com as grosserias da diva.

Luís Nazaré