sábado, 22 de novembro de 2003

Sérgio

Esta é a minha primeira contribuição para um blog. Um blog onde me vou aventurar com um grupo de pessoas diferentes, interessantes e desalinhadas, por muito que se/as procurem alinhar.

Um blog onde devia estar, talhado para o animar, um amigo que perdi e cuja perda cada dia mais dói - Sérgio Manuel Pinto Moutinho.

Ele não saberia o que é um blog. Eu até há muito pouco tempo também não sabia, mas logo que me explicaram percebi que o conceito era o mesmo que ele, há vinte anos, tinha inventado, embora nessa altura a gente nunca tivesse tocado num computador, nem sonhasse que passaria a depender deles.

Mandava-me cartas e postais de Bagdad (ai de visse hoje Bagdad!...), Ancara, Damasco, Alepo, Saana, Riade ou onde quer que calhasse passar na prodigiosa região onde haveria de deixar a vida. Fotocopiava-as para cinco amigos espalhados por esse mundo fora e voltava a fotocopiar e difundir os comentários e reacções que recebia de cada um para todos os outros. Numa escrita fácil, mas intensa, partilhava connosco reflexões despertadas por paisagens, pessoas, povos, costumes, tradições, conflitos, opressões, religiões, histórias e, sobretudo, a História das civilizações imbricadas onde penetrava. Tudo o trazia sempre de volta a Portugal, ao Portugal que o fazia vibrar, o Portugal liberto da guerra (era um africanista entusiasta, fora professor cooperante na Guiné e em Cabo Verde) e a construir a democracia (hoje talvez usasse o verbo atamancar). Voltava sempre às suas orgulhosas raízes vila-realenses e coimbrãs que o liceu americano, feito em Providence, só fizera aprofundar...E à sua «velhota», de que falava a destilar ternura...E aos marujos e furriéis que em qualquer lado sempre lhe saíam a encandear o caminho. E, inevitavelmente, à restolhada dos movimentos no MNE que, à distância, todo o jovem diplomata se entretém a monitorizar.

Um blog é para ser lido e se possível espicaçar gente que se conhece, muita gente que não se conhece e ainda mais que nem se quer conhecer. Um blog tem o interesse de permitir extravasar o que precisa de ser extravasado ou difundido – é um espaço de comunicação livre e aberto, que controlamos. O que, se o Sérgio ainda cá estivesse, veria não ser despiciendo, nos dias que correm, neste Portugal onde os media estão cada vez mais acorrentados a cartéis, de extracção colombiana e tudo.

Para mim o Sérgio inventou os blogs. Por isso a minha contribuição aqui vai ser também uma forma de matar as terríveis saudades que tenho do Sérgio. Vai ser o meio de finalmente berrar que estou convencida que ele foi miseravelmente assassinado, naquele desvio da auto-estrada a caminho de Bodrum, por esbirros de uma ditadura e por razões políticas. Não pelo acaso passional que a todos conveio encenar – em especial à direcção política do MNE. Que me inspirem o seu espírito livre, a sua irreverência, insaciável curiosidade e insuperável decência. Para reflectir sobre o que somos, nós, os portugueses que lhe sobrevivemos e o que é Portugal hoje.

Ana Gomes