quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

Boas Fadas que te Fadem!


"Agradeço ao editor das edições "Âncora", António Baptista Lopes, por este relançamento do livro 
"Boas Fadas que te Fadem", que nos deixou o António Monteiro Cardoso - o Toné, para mim será sempre o Toné. E ele, que desapareceu do nosso convívio faz hoje precisamente um mês, queria tanto este relançamento de um livro que escreveu na base de velhos documentos que descobriu no Convento de São Filipe Nery, em Freixo-de-Espada-à-Cinta.
É muito mais que um romance histórico sobre a nossa História, a da "Santa Inquisição" e das suas demoníacas intolerância e perseguições: é voto que nos deixa um Homem que estudou e usou a História e as histórias de cada um para aprender, para tirar lições e para ensinar a tirar lições do que a Humanidade tem de empolgante e de vil, de progressista e de assustador, do que o Ser Humano tem de potencial e de mesquinhez. 
O António formou-se em Direito e doutorou-se em História porque o que realmente lhe interessava era perceber o ser humano em sociedade e tudo o que ele nela podia engendrar, de bom e de mau. Uma das últimas conversas que, por acaso, ouvi o Toné manter com os nossos netos, Frederico e Mariana, já a falar muito baixinho e com dificuldade, foi justamente sobre a importância de distinguirem entre o Bem e o Mal, de como meninos e depois, já crescidos, procurarem sempre estar do lado do Bem e combaterem o Mal.
Essa, no fundo, foi a sua regra de vida - a regra que lhe incutiram Pais, família e as origens transmontanas, judias, de cristão-novo, em Freixo-de-Espada-à-Cinta - terra onde nasceu, que sempre adorou, que claramente também o moldou e onde repousa agora. E também os amigos, que foi escolhendo e distinguindo com o seu convívio. No fundo, foi a regra que apreendeu e aplicou nas diversas comunidades a que pertenceu, em que sempre se integrou sem perder individualidade, originalidade, discernimento e capacidade de crítica e de auto-crítica. 
O António podia ser um intelectual de saber enciclopédico e cérebro acutilante, de curiosidade irreprimível e incrível capacidade estruturante do que apreendia, do que escrevia ou do que explicava. Mas não se distanciava nunca das pessoas, da sociedade em que vivia e com quem comunicava sempre, na linguagem mais adequada para realmente "estar em comunhão". Incluindo quando praguejava - e como ele, por vezes, praguejava e precisava de praguejar!
Não era um intelectual diletante, nem um historiador encafuado - adorava bibliotecas e livrarias, passava horas na Torre do Tombo, mas não era um rato-de biblioteca. Nem jurista mercenário - dinheiro e bens materiais nunca lhe interessaram: era frugal, bastava-lhe o conforto mínimo. Em contrapartida, as pessoas contavam para ele, cada pessoa à sua volta e todas no seu conjunto, tanto afectiva como intelectualmente, como actores e fazedores de histórias, da História. Interessou-lhe o Direito e sobretudo interessava-lhe a História, porque lhe interessava a vida da comunidade, da sociedade, do País, do mundo, da Humanidade. 
Porque era de esquerda, pensava à esquerda, sentiu sempre à esquerda - os outros, homens e mulheres, contavam. Interessavam-lhe as causas que faziam mover a Humanidade e que explicavam o País que somos e porque somos como somos. Não era de saber apenas livresco: ele entregava-se a causas, dava couro e cabelo, sacrificava o que fosse preciso, sacrificava-se. 
Quando o conheci arriscava tudo, a própria liberdade, a própria vida! Estávamos no final de 1972, nos anos duros do estertor da ditadura. Éramos estudantes da Faculdade de Direito de Lisboa, eu no primeiro ano, ele no quarto, ambos inconformados com a mordaça do regime colonial-fascista, ambos desejosos de o contestar por todos os meios, sem medir consequências. O António particularmente ferido, enraivecido, pelo assassinato pela PIDE de José António Ribeiro Santos, um dos seus mais chegados amigos e colegas de Faculdade, membro como ele da Direcção da Associação de Estudantes, que a ditadura fechara. Ele estava lá, naquele anfiteatro de Economia, no Quelhas, quando o PIDE disparou. Ele esteve lá no Largo de Santos, um dos que pegou no caixão e pôs a multidão a urrar contra o regime. Ele nunca mais parou de conspirar, escrever panfletos e organizar acções, legais e clandestinas, contra o regime, incluindo pinturas murais contra a guerra colonial e as manifs "flash" que os CLACs - "Comités de Luta Anti-Colonial" improvisavam, do Cais do Sodré à Praça do Chile. 
Foi numa destas manifestações na Praça do Chile, no dia 21 de Fevereiro de 1974, dia de Solidariedade para com os Povos das Colónias (porque efeméride do assassinato pela PIDE de Amílcar Cabral) que mais nos ligámos. Eu fiquei a sangrar da cara por ter apanhado uma vergastada de um PIDE, ele cobriu-me com um casaco, puxou-me, guiou-me por umas ruelas, fez-me entrar num prédio, onde aguardamos horas pingando de sangue a escada, até ser noite e arriscarmos sair, para ir ter com companheiros que nos levaram ao Hospital de Santa Maria, a um médico de confiança que providenciava tratamento em segurança, sem nos referenciar à polícia política.
Ambos tínhamos já sido suspensos da Faculdade por "actividades subversivas" em Janeiro de 1974 -  éramos 11 alunos suspensos, o João Soares, o Pedro Palhinha, o Garcia Pereira, a Liliana André, o Manel Pitta  e outros. A defesa, organizada conjuntamente, e as actividades políticas clandestinas a que nos entregávamos já mostravam termos muito em comum. Mas, como é óbvio, aquele episódio da Praça do Chile em que o António fora meu salvador, mais nos aproximou - tornou-se um herói, o meu herói!
Bom, dois meses depois, no dia 25 de Abril, dia em que eu ia entregar na Conservatória os papéis para o casamento - não fui!  Às 7 horas da manhã, um telefonema do Toné estremunhou-me: havia um golpe de Estado e desta vez é que era mesmo ( já tinha havido um gorado 16 de Março, nas Caldas da Rainha...). Ele ia já sair para a Praça do Comércio/ Rua do Arsenal para junto dos militares revoltosos. Eu que fosse ter, logo que pudesse, ao Cineclube, na Almirante Reis, encontrar-nos-íamos lá ao fim da manhã. Naquela altura não havia telemóveis, mas assim aconteceu mesmo. Dali seguimos para o Largo do Carmo, onde estivemos horas entre os populares a exigir o render do regime. Ao fim da tarde arrancamos em manif "espontânea" pela rua Garrett acima: à PIDE, fora com os carrascos! Estávamos na multidão ululante na Rua António Maria Cardoso, quando os carrascos dispararam rajadas de metralhadora. Na confusão esgueirei-me por uma porta, caímos muitos no apertado vão do prédio onde funciona hoje o Centro Nacional de Cultura, uns soluçantes, outros gemendo, devia haver feridos, não sei se algum dos que morreu. Algum tempo depois, já noite cerrada, afoitei-me a sair: metros adiante encontrei o Toné, que arriscava procurar-me pelos vãos de escada da rua. Juntamo-nos à nossa malta, na Brasileira, havia um ferido, o jornalista Adriano, baleado num pé.
Dali fomos para Caxias - era urgente libertar os presos, antes que os carrascos se vingassem neles. Aguardamos horas nas matas, noite escura - estava por ali muita gente, como nós ansiosa por recuperar os seus. Um dos primeiros libertados que abracei foi o Tó Luis Cotrim - que no dia 20 de Maio de 1974, na Conservatória de Alcântara, havia de ser um dos nossos padrinhos de casamento, junto com o Manuel Gavião Carvalho Costa, que hoje aqui está connosco.
Não vos vou contar as peripécias da vida aventurosa de ambos no MRPP, depois do 25 de Abril - nem das rondas que o Toné fez pelo país na nossa "Diane" amarela a fazer ver "O Couraçado Potemkine" por recônditas aldeias; nem nas viagens loucas dele a distribuir o "Luta Popular" pela periferia de Lisboa; nem dos seus trabalhos como advogado para libertar as catrefas de MRPP's que os MJTs e a 5a Divisão do MFA levavam presos... Nem do dia em que eu decidi afastar-me do MRPP, em Janeiro de 1976,  e em que o António me disse que se fosse obrigado a escolher entre mim, a nossa filha e a "Revolução a todo o vapor", nos escolhia a nós. Não foi forçado a escolher, mas um ano depois afastou-se ele, desapontado com o fosso entre a retórica e a prática dos dirigentes e compreendendo que valia a pena tentar aproveitar a abertura política para trabalhar pela democracia no país. Foi uma entrega genuína e altruísta, a dele, a minha e de tantos outros ao MRPP e a toda a actividade clandestina e perigosa que a precedeu: o António nunca tolerou aquela conversa maledicente dos que atribuíam o MRPP a esquema da CIA, para escamotear a sua própria impotência na luta contra o fascismo e o colonialismo.
Sete anos e sete dias dias depois de nos casarmos, divorciamo-nos de comum acordo, civilizadamente, ficando amigos e dando-me sempre ele, seus Pais, Manuel e Nair, sua Irmã Madalena, sua dedicada empregada/ama Celeste e toda a sua Família, todo o apoio na minha vida profissional atribulada para criar a nossa filha, Joana. Lembro-me como tirou uma semana de férias e veio passá-la connosco em Genebra só para tranquilizar a Joana que, ao saber que vinha lá um irmão, o João, temia pela perda do estatuto reinante de filha, neta e sobrinha única... O Toné foi um pai dedicado e atento, embora não tivesse sido formatado para por fraldas nem aquecer biberões... Mas tornou-se ainda mais presente quando começou a poder ter conversas sobre História e sobre a vida com a Joana adolescente, Joana que já na Universidade viria morar com ele, na Junqueira. Joana e João que, na doença que o levou, se uniram terna e desveladamente a cuidar dele, como ele sempre se desvelara como Pai de ambos.
Uma das maiores penas que tenho - que todos temos, de certeza - é termos perdido a possibilidade de estar horas a conversar e ouvir o Toné desfiar histórias e História, com a graça, o sentido de humor, o riso inteligente, o saber erudito salpicado de saborosa "petite histoire"... Resta-nos a consolação de que muita da capacidade de observação e de criatividade sarcástica e inteligente que o João plasma nas suas "produções fictícias" foram herdadas do Pai... Como a Joana é, em tanta coisa, muito, muito, Pai e Avó Nani.
Resta-nos também a consolação de que os netos do António, os nossos netos que ele adorava e pelos quais sempre se pelou por fazer o que não tivera, tantas vezes, ocasião de fazer pela filha -  (por exemplo, ir buscá-los à escola) ainda tiveram a sorte de o poder ouvir, de viva voz, contar histórias da guerrilha do Remexido, das lutas entre miguelistas e liberais, dos portugueses e timorenses "abandonados" mas resistentes em Timor. E manterão assim viva a imagem de um Avô muito querido, muito presente, inteligente, culto, divertido e, sobretudo, muito bonzinho e advogado do Bem contra o Mal.
Têm eles, e nós todos, outra fortuna: a de que sempre poderão voltar a recuperar ânimo na obra que o António deixou, toda ela impregnada dos valores que nortearam a sua vida, pessoal, profissional e política. Quando o conheci, já ele tinha escrito e publicado com o Alberto Arons de Carvalho e o Nuno Godinho de Matos, um livro arrojado no tempo da ditadura sobre "A Liberdade de Imprensa" - um estudo jurídico-científico que era um libelo contra as perversidades censórias da ditadura que amordaçava os portugueses.
O António adorava dar aulas. Pouco depois de casarmos, já depois do 25 de Abril, foi um dos organizadores, professor-assistente e escritor das sebentas das aulas de "História Económica e Social de Portugal" na Faculdade de Direito de Lisboa. Tinha uma capacidade incrível de estruturar o pensamento, de escrever rapida e afincadamente e de falar simplesmente, descontraidamente, para interessar, ensinar e passar a outros o tanto que sabia. Sei que adorou dar aulas na Escola Superior de Comunicação Social, imagino que os alunos ali estariam particularmente despertos para absorver tudo o que eles lhes procurava incutir.
Julgo que o que ele ali aprendeu com os seus alunos - como a sua Mãe, o Toné era um genuíno professor, que quanto mais ensinava, mais aprendia também e avidamente - foi decisivo para aquela que eu considero a sua obra mais refinada e com potencial de chegar a mais gente: uma obra que poucos ainda conhecem, sou uma das privilegiadas que pude já ler o argumento que ele escreveu sobre o seu livro "O diário do Tenente Pires" para o filme que o Francisco Manso há-de fazer em Timor Leste, sobre a heróica resistência de timorenses e portugueses, como o Tenente Pires e Cal Brandão, contra os ocupantes japoneses na II Guerra Mundial e contra a ditadura de Lisboa que os abandonara. Lê-se o guião e estamos a ver o filme: é prodigiosa a capacidade do intelectual que desenterra a História e a consegue transpor para o écran, contando através das histórias emocionantes dos personagens que anima, e dos que inventa, a gesta dos que em Timor se mobilizaram contra os invasores - a gesta universal dos que lutam pela liberdade contra a opressão. Esse filme tem de ser realizado, o guião escrito pelo António é fabuloso! E eu prometo aqui, em sua memória, que farei tudo o que estiver ao meu alcance para podermos desfrutar um dia, numa sala de cinema ou em casa, do  filme "Abandonados".
O que o António mais gostava de estudar, de ensinar e de falar era de História, porque a história é a vida, e sem História, sem histórias, a vida não tem sentido. A dele teve, para todos nós os que aqui estamos: eu e a Cristina, mães dos seus filhos; para a Joana e o João, seus filhos; para os netos; para a irmã Madalena; para  a mãe, Sra. D. Nair; para os primos, primas e amigos e amigas, alunos e professores, colegas e velhos camaradas.! E para muito mais, que hoje aqui não estão e nem sequer tiveram a sorte de o conhecer pessoalmente, como nós, mas que vão poder ter o prazer de ler a obra que ele deixou. 
O António fadou-nos com a sua vida e com uma obra que tão benfazejamente continuará a fadar as nossas vidas!  "Boas fadas que vos fadem!" A todos!"

(Intervenção ontem, 11.2.2016, na Livraria Férin, no relançamento do livro "Boas Fadas que te Fadem!" e tributo ao Autor, António Manuel Monteiro Cardoso, nascido em Freixo-de-Espada-à-Cinta em 8 de Setembro de 1950, falecido em Lisboa, em 11 de Janeiro de 2016).